Em fevereiro de 2022, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa em conjunto com as organizações Conectas Direitos Humanos, Transparência Internacional, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Artigo 19, enviaram um ofício ao Ministério Público Federal (MPF) solicitando abertura de inquérito para investigar o uso de sistemas de vigilância pelo governo federal. O pedido foi acolhido em junho pelo colegiado da 7a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, e representa uma vitória para a sociedade civil. A denúncia feita pelas organizações aponta para irregularidades sobre a ausência de parâmetros legais e de accountability no uso do sistema conhecido como Córtex, ou “Plataforma Integrada de Operações e Monitoramento de Segurança Pública” pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). 

O sistema tecnológico e o arranjo institucional permitem o compartilhamento de dados imunes à supervisão, abrindo margem para usos abusivos e coercitivos, característicos de um Estado “tecnoautoritário”, conceito que vem sendo trabalhado em projeto de pesquisa da Associação Data Privacy Brasil. Frente ao elevado risco de ameaça à privacidade e intimidade dos cidadãos, bem como à probidade administrativa, o MPF acatou o pedido, baseando-se também na nota pública da Coalizão Direitos na Rede (composta por 42 entidades atuantes na defesa dos direitos digitais no Brasil) que levanta perguntas sobre o potencial de infração desse sistema aos direitos fundamentais dos cidadãos.

O voto que instaurou o procedimento administrativo destaca i) a aquisição de mais de 500 (quinhentas) licenças de softwares e soluções de inteligência, compradas com verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública mediante dispensa de licitação, pelas unidades do MJSP; ii) as informações de que esses sistemas não são auditáveis (não permitindo assim algum tipo de controle e fiscalização), e que há policiais que adquirem licenças individuais; iii) e o uso indevido da plataforma Córtex e sua relação com outros projetos como o denominado “Projeto Excel”, que cria uma base de dados nacional constituída por dados obtidos mediante o uso de ferramenta própria de extração e análise de dados de dispositivos móveis, compartilhados com a Diretoria de Inteligência da SEOPI (Secretaria de Operações Integradas do MJSP):

“não há dúvida de que os fatos narrados pelas entidades representantes – que convergem para a implementação e utilização, pelo Poder Executivo Federal, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de solução tecnológica habilitada para reunir dados de mais de 160 (cento e sessenta) bases distintas em todo o território nacional, com capacidade de definição de alvos para cercamento eletrônico e monitoramento persistente e retenção de dados por período de 10 (dez) anos, sem parâmetros legais e indispensável accountability – não apenas justificam, como impõem ao Ministério Público Federal, o exercício de seu dever constitucional de controle externo da atividade policial no caso concreto.” (grifo nosso).

Existem provas do funcionamento do Córtex sob a gestão da SEOPI, sem publicação de qualquer ato normativo que regulasse a sua utilização. Os casos são abordados em  reportagens dos veículos The Intercept e Crusoé, havendo também vídeos, depoimentos e outros documentos, que dão suporte à representação do Inquérito Civil n° 1.34.014.000259/2017-14. O voto ainda traz dúvidas quanto ao ato administrativo normativo interno, sobre o escopo do sistema e, também, quanto às salvaguardas relacionadas à sua utilização. 

O inquérito do MPF questiona  se há possibilidade de se somar ilimitadas funcionalidades adicionais ao sistema, como e a quem caberia avaliar a pertinência e a legitimidade dessas novas funcionalidades, como seria operacionalizado o controle desses acréscimos, e como seria dada transparência a essas medidas. Chama atenção a falta até mesmo de um entendimento comum sobre o que é considerado “segurança pública”, dentre os mais diversos órgãos que podem usufruir do Córtex. 

Com esse avanço, e cientes de que ainda há muito trabalho a ser feito a respeito de controle externo da atividade policial no Brasil, como também da proteção dos direitos fundamentais e constitucionais do cidadão, a Associação Data Privacy Brasil e as entidades parceiras seguem acompanhando este e outros casos relativos ao uso de tecnologias de vigilância no país.

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