Texto | Expandindo o papel das Defensorias Públicas na proteção de dados no Brasil | Assimetrias e Poder
Ciclo Formativo em Direitos Digitais e Proteção de Dados para Lideranças Populares
Na última terça-feira, dia 23 de agosto de 2022, realizamos a Aula Inaugural Aberta no YouTube, dando início ao Ciclo Formativo em Direitos Digitais e Proteção de Dados para lideranças populares. O projeto, apoiado pela Fundação Ford, foi concebido pela Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e a Ouvidoria Externa e surgiu a partir de um diagnóstico em comum de que é necessário criar novos repertórios sobre proteção de dados, relacionando-a com as dimensões coletivas de cidadania e ativismo.
O evento foi dividido em duas partes: primeiramente, houve uma mesa de abertura com a participação de Rodrigo Pacheco (Defensor público-geral do Estado do Rio de Janeiro), Beatriz Cunha (Defensora pública encarregada da proteção de dados ds DPRJ), Guilherme Pimentel (Ouvidor-geral da DPRJ) e Johanna K Monagreda (Coordenadora de Pesquisa da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa). Em um segundo momento, os professores Rafael Zanatta (diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa) e Bianca Kremer (professora do IDP/Brasília) iniciaram a aula sobre direitos digitais e direitos dos titulares.
Para desenvolver os cinco módulos da formação, elaboramos uma pesquisa exploratória para identificar as principais demandas e preocupações das populações. Embora haja uma percepção generalizada de que as discussões sobre direitos digitais não teriam ressonância para os movimentos sociais, a pesquisa indica o contrário. Conforme destaca Johanna Monagreda, “as carências e necessidades materiais são uma realidade, mas não impedem que a população se preocupe com o que acontece com seus dados pessoais. A pesquisa revelou que há uma compreensão de que a proteção de dados pode ser uma forma de garantir o acesso a outros direitos.”
Como resultado, obtivemos 5 (cinco) módulos que serão realizados entre agosto e dezembro de 2022: 1. “Entendendo mais de proteção de dados: Quais são os meus direitos básicos como titular?”, 2. “Proteção de dados no consumo: O que as empresas fazem com meus dados de consumidor?”, 3. “Reconhecimento facial, sistema penal e vigilância”, 4. “Proteção de dados de crianças e adolescentes: Quais os riscos de seus filhos usarem redes sociais e terem fotos deles compartilhadas na internet?” e 5. “Discurso de ódio e ofensas nas redes sociais: O que fazer para me defender?”.
A importância da proteção de dados como um meio para concretizar outros direitos ficou evidente durante a pandemia, como afirma Rodrigo Pacheco: “A pandemia mostrou que o número de inserção das pessoas na favela é grande. Durante a crise sanitária, a Ouvidoria realizou vários projetos que se valeram de ferramentas tecnológicas, então nada mais que fundamental falar de proteção de dados e direitos digitais e sair desse meio elitizado e tensionar para outros lados, para grupos mais vulnerabilizados.”
Nesse contexto, a Ouvidoria, que funciona como um canal de democratização da DPRJ, desempenhou um papel estratégico para a divulgação do ciclo e contato com as lideranças populares e movimentos sociais. Na sua fala, Beatriz Cunha celebra a realização da formação em parceria com a Associação de Pesquisa e a Ouvidoria, uma vez que “é mais um curso de educação em direitos voltado aos direitos humanos que pretende traduzir o juridiquês do direito digital partindo da premissa que nossos usuários se valem da internet para atividades de lazer, usufruir de políticas públicas e acessar à justiça, por exemplo.”
Por sua vez, o ouvidor Guilherme Pimentel, destacou que a primeira turma do ciclo formativo aceitou um grande desafio. O desafio posto é de suas demandas e preocupações durante as aulas de modo a auxiliar na disseminação de boas práticas de defesa de direitos nas suas comunidades e vizinhanças e orientações sobre o que fazer caso um direito seja violado.
Em seguida, os professores Rafael Zanatta e Bianca Kremer iniciaram o Módulo 1 sobre direitos dos titulares, adotando uma dinâmica de diálogo para abordar a problemática dos direitos digitais centrada nas realidades brasileiras e na justiça social.
Mas o que são direitos digitais?
Para Rafael Zanatta, o conceito de direitos digitais ainda está marcado por uma antiga ideia dos anos 90 de “cyberespaço”. Porém, “atualmente não tem sentido pensar separadamente o digital do material, uma vez que estão complementando imbricados, representando dimensões do capitalismo atual”. Bianca Kremer completa que os direitos digitais podem ser entendidos como conjuntos de normas que tem o objetivo de tutelar relações humanos que versam em espaços digitais.
Em linhas gerais, o conceito de direitos digitais serve para explicar como nossos direitos fundamentais são afetados pelas tecnologias da informação e por isso, trata-se de um conceito que diz respeito a lutas que são sempre dinâmicas.
Violações de direitos no dia a dia
Conforme Johanna Monagreda salientou, a proteção de dados pode parecer distante da realidade de muitas pessoas, mas na verdade ela permeia a cotidianidade.
Quem nunca foi a uma farmácia e teve seu CPF solicitado para desconto? Esse é só um dos exemplos diários que os professores trabalharam no segundo bloco da aula. “O CPF tem sido utilizado nas farmácias de forma leviana para conceder desconto, o que também configura uma violação ao direito do consumidor”, afirma Bianca.
Em 2018, houve o escândalo da Cambridge Analytica que ficou conhecido por influenciar a eleição de Trump nos Estados Unidos e o movimento de saída da União Europeia no Reino Unido (Brexit). Basicamente, o escândalo Cambridge Analytica foi um esquema de coleta de dados, aproveitando uma brecha nos termos e condições do Facebook que não proibia expressamente a venda de dados coletados na rede social por aplicativos.
O episódio marcou uma virada na compreensão sobre a importância da privacidade e proteção de dados pessoais, deixando claro que estávamos sendo constantemente vigiados.
A tecnologia presente no nosso dia a dia coleta diversos dados pessoais, favorecendo a expansão da vigilância. Atualmente, temos casos de implementação de sistemas de reconhecimento facial nos estados da Bahia, Ceará, Rio de Janeiro e em São Paulo. Rafael Zanatta destaca os problemas da extensão da vigilância em espaços públicos: “Hoje, é possível que você deixe de ir a um protesto por ter um drones e câmeras de reconhecimento facial capazes de capturar imagens identificadoras. Precisamos construir uma agenda de bloqueio de uso de drones e câmeras em espaços abertos, precisamos lutar para que isso não seja usado de forma aberta sem justificativa.”
Contudo, existem outras formas menos sofisticadas de tratamento abusivo de dados que gera resultados injustos e discriminatórios. O reconhecimento fotográfico, por exemplo, é muito utilizado pelas delegacias para fins de investigação e persecução penal de forma arbitrária e indiscriminada. Imagens de Instagram e Facebook são coletadas para retroalimentar álbuns de suspeitos com o objetivo de identificar as pessoas nas delegacias em caso de crimes, gerando casos de prisões injustas e ilegais. O reconhecimento fotográfico apresenta diversos problemas como a falta de transparência sobre os catálogos de suspeitos e o viés racial dos álbuns que viola de forma sistemática a garantia constitucional à presunção de inocência. A população de forma geral é afetada pela falta de regulamentação do reconhecimento fotográfico, mas dados empíricos demonstram que a população negra e em situação de vulnerabilidade socioeconômica são as mais prejudicadas por estas práticas. Um levantamento feito pela Folha de São Paulo indica que 71% dos reconhecimentos errados incriminaram pessoas negras, com dados similares presentes no relatório do CONDEGE (80% de erros em reconhecimentos fotográficos são de pessoas negras) e da Coordenação de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (83% de pessoas negras apontadas como suspeitas).
As relações de trabalho também são impactadas. “Existe uma outra dimensão, que é o modo como o nosso trabalho e o nosso cotidiano estão sofrendo um grande ataque metrificação da vigilância constante. Todas as suas condutas são catalogadas, registradas e metrificadas para gerar a sua performance, feita por um gerente automatizado. São esses cálculos automatizados que aplicam uma nota quando há suspeita de fraude, impedindo condições dignas de trabalho”, comenta Rafael Zanatta. A metrificação do trabalho pode ser facilmente observada nas plataformas como Uber, iFood e Rappi. No caso do Uber, os motoristas e passageiros negros vivem uma experiência de ranqueamento diferenciada e relatam expulsões, notas baixas, xingamentos e assédios, como mostra a matéria Avaliar e Punir do The Intercept Brasi.
“São muitos os relatos de entregadores que ao perceber os valores baixos das corridas, decidem voltar para casa. Ao se aproximarem de sua residência, eles recebem pedidos de entregas altíssimos, o que os compele a voltar para o trabalho por conta da demanda de dinheiro”, conta Bianca Kremer.
A professora compartilhou também sobre um caso recente no qual o iFood fez um acordo com Polícia Militar de SP e RJ para liberar entregadores mais rápido em blitz. De acordo com a professora, esse é um excelente caso para pensar nos níveis de sucateamento e metrificação a que a população está sujeita. A empresa, junto com as Secretarias de Segurança Pública, criou uma tecnologia que integra o cadastro de entregadores do iFood com o sistema público para que as autoridades consigam confirmar se aquela pessoa parada na blitz faz entregas em nome do aplicativo. “É mais uma forma de reiterar o racismo, uma vez que o sujeito está duplamente sucateado. Primeiro, em razão da sua modalidade de trabalho, em segundo lugar, por fornecer seus dados à empresa para um determinada finalidade e em seguida, seus dados serem compartilhados com o Poder Público”.
Como os direitos digitais e a proteção de dados podem servir como instrumentos de justiça social?
“De que forma os direitos digitais podem nos auxiliar nesse processo de resistência em face do projeto político brasileiro que tem como objetivo e fundamento práticas racistas?”. Bianca Kremer inicia o segundo momento da aula sinalizando que cada um de nós vai experienciar a privacidade de forma distinta.
Existe uma noção tradicional de privacidade que é notadamente burguesa e liberal, associada ao direito de propriedade. Como Bianca sinaliza, a privacidade se torna um direito de “quem pode ter há muito, quem tem há muito e quem pode deixar de ser acessado pelo Estado”. Mas e em outras realidades como nas favelas? Qual o poder que uma família tem de repelir a presença do estado dentro da sua casa?
“Para comunidades e periferias, o conceito de privacidade e de oposição a terceiros públicos ou privados é totalmente diferente porque estão em um território no qual a disposição física dos espaços já é diferente”, ressalta Bianca.
A professora afirma que os direitos digitais ainda são um campo em disputa que tem sido construído para atender a um determinado nicho de mercado. Por isso, a educação em direitos é decisiva, pois conhecer as ferramentas e nossos direitos é fundamental para sabermos como lutar dentro do sistema pela via institucional, judicial e administrativa.
Portanto, “quando falamos de direitos digitais, falamos em utilizar não só o Direito, mas também a tecnologia como ferramentas de combate e imposição de resistência aos processos de desumanização que vivemos na sociedade brasileira, não só mobilizando os direitos concernentes ao próprio direito digital, mas demais direitos’‘, afirma Bianca.
E a Lei Geral de Proteção de Dados?
Para a defesa de nossos direitos, existem certas leis que podem nos amparar. No último bloco da aula, os professores trabalharam conceitos-chave da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Em linhas gerais, o objetivo da LGPD é tentar fortalecer a autodeterminação informativa da pessoa para trazer maior autonomia ao processo de tomada de decisão que se relaciona às nossas informações.
Mas então como identificar dados pessoais? “Dado pessoal não é só CPF e RG”, diz Rafael Zanatta. Dados de geolocalização e IP (Internet Protocol), por exemplo, podem ser agregados para identificar uma pessoa. Os dados pessoais identificáveis são aqueles que uma vez cruzados com outras informações, podem levar à identificação de uma pessoa. Assim, “se for um grupamento social específico ou um banco de dados mais ou menos reduzido, dependendo do tipo cruzamento realizado, é possível identificar a pessoa e questões relacionadas a gênero, vestimenta, raça, entre outros. Dependendo do tipo de informação e dado identificável, você pode chegar a identificar uma pessoa, a depender do grupo e o contexto que aquela pessoa está inserida”, afirma Bianca.
Existem ainda dados pessoais sensíveis, ou seja, dados que toda vez que se tornam conhecidos podem levar à discriminação e estigmatização da pessoa. Em razão do seu potencial uso discriminatório, os dados sensíveis exigem um cuidado especial, isto é, a lei é mais rigorosa em relação aos cuidados necessários para tratar dados pessoais sensíveis.
Caminhando para o encerramento, Bianca Kremer comenta sobre a estrutura da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A lei está diante de um tripé, ou seja, existem três elementos essenciais que compõem o esqueleto da norma. Em primeiro lugar, temos os 10 (dez) princípios (art. 6º da Lei) que precisam ser integralmente cumpridos caso contrário estamos diante de violações à lei. O segundo elemento são as bases legais (arts. 7º e 11 da Lei) que são justificativas para o tratamento de dados. O último e terceiro elemento são os direitos dos titulares (arts. 17 a 22 da Lei). Os direitos dos titulares são a musculatura da LGPD, porém não são capazes de sustentá-la sozinha.
Não basta, portanto, haver a lei, é necessário saber como exercer seus direitos. Nesse ponto, Rafael Zanatta finaliza afirmando que “Uma parte importante da lei é que todos nós temos direito de peticionamento à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), mas também temos o direito de garantir o peticionamento perante órgãos de defesa do consumidor, Procons, Senacon, entre outros.”
E você? O que pensa sobre direitos digitais e justiça social? Como a LGPD pode ajudar as lutas emancipatórias e os movimentos sociais?
Se você perdeu a aula inaugural, clique aqui para conferir. Não fique fora dessa!
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