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Como as Big Techs cravaram os dentes na educação brasileira
Do nada, milhares de estudantes, professores e até alguns pais de alunos no estado de São Paulo acordaram em 8.ago.2023 com um novo aplicativo em seus celulares pessoais.
A instalação do app “Minha Escola” – automática, sem aviso e, principalmente, sem autorização dos usuários – foi feita pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEDUC) e causou irritação generalizada dentre as pessoas afetadas, além de representar uma potencial violação da Lei Geral de Proteção de Dados (a LGPD).
Após alguma comoção, a SEDUC alegou ter se tratado de um erro durante teste realizado pela área técnica, afetando dispositivos conectados a contas do Google, com o qual a secretaria tem um convênio desde 2016.
É ✷ IMPORTANTE ✷ PORQUE…
As Big Techs têm se aproximado cada vez mais do setor de educação, deixando muitas organizações dependentes de seus produtos e serviços
Ações tomadas por secretarias de educação a partir desses serviços de Big Techs podem ir contra a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
Um caso semelhante ocorreu no Paraná em nov.2022 e também foi visto com desconfiança por usuários e especialistas. Ironicamente, o secretário à época é o mesmo Renato Feder, atual secretário de Educação do Estado de São Paulo.
Embora a Big Tech não tenha participação direta na instalação desses aplicativos, isso só foi possível porque estavam conectados a contas do Google, o que traz à luz uma questão maior: a presença constante de gigantes de tecnologia no ambiente educacional brasileiro.
E as Big Techs estão em peso no setor de educação: segundo levantamento do Observatório Educação Vigiada, uma iniciativa de divulgação científica de pesquisadores acadêmicos e de organizações sociais, metade das 76 secretarias de educação estaduais e municipais utilizam serviços do Google ou da Microsoft para o ensino básico.
Já entre 145 universidades brasileiras, 80%
delas utilizam servidores ou do Google ou da Microsoft.
Existe também uma opacidade com a qual são tratados os dados de usuários, como no caso dos apps instalados sem consentimento.
Segundo Marina Meira, pesquisadora do Data Privacy Brasil, houve uma clara violação à lei nesses casos dos aplicativos. “Uma das bases legais da LGPD é o consentimento, caso ela seja a base utilizada, é necessário que o usuário tenha a possibilidade de dizer sim ou não, o que aquela atividade de processamento de dados vai implicar para ele”.
Catarina Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, complementa que a situação é ainda mais séria porque se tratar de dados de crianças e adolescentes.
“Se a gente pegar o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) um dos incisos da lei vai trazer exatamente sobre a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente, que deve ser efetuada no respeito pela intimidade, no direito à imagem e reserva de sua vida privada”, avalia a docente.
GOOGLE NA DIANTEIRA
De Meta a Apple, de Amazon a Microsoft e Zoom, muitas empresas de tecnologia tem áreas e produtos desenhados para educação. Mas nenhuma talvez tenha tanta entrada quanto o Google.
Segundo dados de nov.2022 do relatório “Educação em um Cenário de Plataformização e de Economia de dados“, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI-BR), 24 das 27
Unidades Federativas Brasileiras tem parcerias com uso de aplicativos do Google.
No fim de jun.2023, a companhia anunciou um recurso de tutoria personalizada para alunos com foco no ensino médio baseado em inteligência artificial (que exige grande quantidade de dados).
Em jun.2022, o Google fechou um acordo com o Ministério da Educação para oferta de ferramentas educacionais, incluindo um pacote “gratuito” de ferramentas de produtividade do Google Workspace.
E esses são apenas alguns exemplos.
Gráfico Interativo
“Hoje, a maior parte das secretarias estaduais de educação do Brasil usam plataformas de Big Techs, especialmente do Google”, comentou Meira, afirmando que esse movimento acelerou muito no começo da pandemia e com a necessidade de passar para o regime de ensino remoto.
Apesar de uma aceleração recente, pelo menos desde 2017 o Google deixa claro que quer entrar pesado no segmento de educação no Brasil.
Para Santos, essa realidade – já presente antes da Covid-19 – se escancara após a retomada do ensino presencial e híbrido em conjunção com tecnologias para educação, criando um ecossistema que vai muito além das escolas.
“A população brasileira está toda, direta ou indiretamente, ligada ao sistema educativo”, explica a professora.
Quando se utiliza essas empresas ou essas big techs nesse processo educativo, elas estão captando dados mais diversos, não só os dados pessoais, como os dados comportamentais, não só das crianças, de adolescentes, mas também dos seus pais e responsáveis.
– Catarina Santos, da UNB
MINA DE DADOS
Em abr.23, a Humans Rights Watch (HRW) analisou características de privacidade (ou falta dela) de 164
produtos de educação à distância para crianças das chamadas edtechs (startups/empresas de educação com foco em tecnologia).
Esses produtos foram usados em 49 países (entre eles, o Brasil) para proporcionar educação à distância a crianças e adolescentes durante a pandemia de Covid-19.
De 146 das edtechs analisadas, 89% apresentaram práticas que colocam em risco ou infringem os direitos dos menores de idade.
“O que a gente viu as Big Techs fazendo foi oferecer os seus serviços ‘gratuitamente‘ (gratuitamente entre aspas mesmo) para secretarias de educação, para que fossem firmados convênios e não instrumentos de venda, para que isso não tivesse que passar por uma licitação”, contextualizou a pesquisadora.
Para Meira, a recompensa das empresas são os dados dos estudantes, dos professores e até mesmo das famílias dos estudantes.
Isso é “a roda da engrenagem do modelo de negócio delas”, contextualizou, adicionando que essas empresas funcionam a partir de um modelo de negócio baseado em dados.
Elas querem tratar o máximo possível de dados pessoais para poder ter algoritmos cada vez mais precisos e direcionar aos usuários publicidade microsegmentada
– Marina Meira, da Data Privacy Brasil
“Publicidade direcionada, que é aquela publicidade comportamental que vai ser precisa, direta, pensada para os seus gostos e interesses. É assim que funciona o modelo de negócio das empresas”.
Além disso, à medida que instituições se tornam cada vez mais dependentes de serviços “gratuitos” oferecidos por Big Techs, cresce o risco de que essas empresas poderão futuramente cobrar por eles, deixando pouca margem de manobra a não ser pagar.
Em 2022, por exemplo, conforme informado do Intercept Brasil, o Google anunciou que começaria a cobrar de universidades para as quais fornecia seus produtos “ilimitados” gratuitamente.
COMO FIZEMOS ISSO
O Núcleo consultou especialistas e analisou dados disponibilizados na plataforma do Observatório Educação Vigiada.
REPORTAGEM LEONARDO COELHO
ARTE E MAPA RODOLFO ALMEIDA
EDIÇÃO SÉRGIO SPAGNUOLO
Texto escrito por Leonardo Coelho e Sérgio Spagnuolo e publicado originalmente no dia 24.08.2023 no site Núcleo Jornalismo.
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