A audiência pública foi convocada pelo ministro Cristiano Zanin, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1143, proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que pretende abordar a regulamentação do uso de ferramentas de hacking governamental, monitoramento através de spywares em aparelhos de comunicação pessoal por órgãos e agentes públicos. Foram ouvidos 33 participantes nos dois dias da audiência, entre representantes de instituições públicas e privadas, advogados, acadêmicos, especialistas e profissionais liberais. As empresas fabricantes (Cellebrite, Cognyte, Exterro, Magnet Forensics, Micro Systemation AB e OpenText),  também foram convidadas para a audiência, mas todas declinaram a participação.

Fotos: Gustavo Moreno e Andressa Anholete /SCO/STF

 

Na ADPF 1143, a PGR argumenta que, apesar de avanços na legislação para proteger a intimidade, a vida privada e o sigilo das comunicações pessoais, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ainda não há regulamentação específica para a utilização de programas spywares. O STF vai analisar se há violação de preceitos fundamentais no uso dessas ferramentas e, em caso positivo, decidirá como superar esse cenário, banindo o uso desta tecnologia em território nacional, ou propondo uma regulamentação até que o Congresso Nacional legisle sobre o tema.

A Data Privacy Brasil ao longo dos últimos anos tem investigado e documentado o uso de spywares no curso do projeto sobre Tecnoautoritarismo, além de ingressar na Global Task Force on Digital Authoritarianism, uma rede internacional de pesquisa, com sede no Canadá, sobre usos autoritários de softwares. Atualmente, em parceria com o InternetLab, a Data tem pesquisado e incidido no tema através da Iniciativa de Defesa Digital, que busca aprofundar a pesquisa nas ferramentas de vigilância utilizadas em território nacional, produzindo relatórios técnicos para o auxílio na discussão da salvaguarda dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário e Legislativo.

Fotos: Gustavo Moreno e Andressa Anholete /SCO/STF

 

Pedro Saliba, Coordenador de Assimetrias e Poder da Data Privacy Brasil, representou a instituição na audiência pública apresentando a tipologia construída no projeto Iniciativa de Defesa Digital para balizar a construção jurídica da Corte. A classificação evidencia as características de cada categoria de spyware e seu nível de intrusão, que geram violações diretas e indiretas a diversos direitos fundamentais.

Ausência de legislação específica

O representante da União Nacional dos Profissionais de Inteligência de Estado da ABIN (INTELIS), Hugo Alberto Lazar, ressaltou que a lei vigente sobre os serviços de inteligência no Brasil está desatualizada, e defendeu a criação de um mecanismo de controle judicial prévio para ações operacionais, como ocorre em outros países.

Representando o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Carina Quito e Carlos Hélder Furtado Mendes defenderam que o assunto seja debatido no Congresso Nacional. Heloisa Estellita, docente da FGV, também defendeu a prerrogativa do Legislativo sobre o tema, concordando com a exposição feita pelo IBCCRIM, pois, enquanto não houver uma LGPD penal, para regulamentar as condições de acesso, não há infraestrutura legal que autorize a utilização de ferramentas de monitoramento secreto.

Fotos: Gustavo Moreno e Andressa Anholete /SCO/STF

 

Bárbara Simão, InternetLab, e Raquel Saraiva, IP.rec, defenderam que caso o STF julgue necessária uma nova legislação, que ela seja extremamente restritiva com medidas visando a transparência, investigação das empresas das empresas contratadas, relatórios de impacto e delimitação do uso a tipos penais mais graves. As especialistas demonstraram pediram a atenção da Corte ao princípio da proporcionalidade, fazendo a reflexão do uso excessivo que ataca direitos.

Laura Schertel Mendes, representante da Comissão de Direito Digital da Confederação Federal da OAB e professora de Direito trouxe diversos exemplos de como o tema está sendo discutido em todo o mundo. O destaque, presente em outras falas, foi para a experiência alemã, que proibiu a utilização destas tecnologias em um primeiro momento, construindo uma reflexão sobre um novo direito digital que estava sendo violado com o hacking governamental. Após longa discussão e debates por anos, o país regulamentou a matéria de forma densamente restritiva, em que a legislação para o uso dessas ferramentas esteja diretamente ligada a um perigo concreto à vida, criando mecanismos de transparência, proporcionalidade e controle externo.

Legislação já suficiente

Por outro lado, os representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério Público, Polícia Federal e Forças Armadas argumentaram pela não necessidade de uma nova legislação sobre o tema, sendo que as normas e leis existentes já legitimam o uso destas tecnologias por parte do Estado. Os representantes do Ministério Público e Polícia Federal defenderam o uso dos spywares com a finalidade forense na investigação policial, enquanto os representantes da Forças Armadas (Exército, Aeronáutica e Marinha) argumentaram da importância da utilização dessas ferramentas para a defesa do território nacional, como em áreas fronteiriças, na Amazônia Legal e o combate ao tráfico internacional.

A Data Privacy Brasil recomenda à Corte um exame de proporcionalidade e razoabilidade sobre a aquisição, desenvolvimento e uso de spywares pelo Poder Público brasileiro, considerando as competências legais dos órgãos, as capacidades técnicas das ferramentas e o reconhecimento das múltiplas violações de direitos fundamentais que podem trazer. As organizações presentes poderão apresentar memoriais à Corte, além de petições dos amici curiae com os pontos detalhados sobre o tema, auxiliando o STF na decisão deste tema. Acompanhe a Iniciativa de Defesa Digital para mais detalhes sobre o tema.

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