A infraestrutura pública digital como conceito: notas do evento “Horizontes Comuns”
A Data Privacy Brasil organizou o evento “Horizontes Comuns: o papel da infraestrutura pública digital em finanças, identidade e justiça climática”, na sede da Dataprev, em Brasília. O evento marcou o lançamento do relatório “A infraestrutura da identidade: os influxos de uma identidade digital como aplicação da IPD”.
No dia 30 de julho de 2024, a Data Privacy Brasil organizou o evento “Horizontes Comuns: o papel da infraestrutura pública digital em finanças, identidade e justiça climática”, na sede da Dataprev, em Brasília. O evento marcou o lançamento do relatório “A infraestrutura da identidade: os influxos de uma identidade digital como aplicação da IPD”, de autoria dos pesquisadores Eduarda Almeida e Pedro Bastos Lobo Martins, da Data Privacy Brasil.
No painel “Fundações da infraestrutura pública digital”, realizada na manhã do dia 30, cinco especialistas internacionais foram convidados para debater o conceito de infraestrutura pública digital: Stephanie Diepeveen (ODI), Francisco Gaetani (Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos), Astha Kapoor (Aapti Institute), Beatriz Vasconcelos (University College of London) e Miriam Wimmer (Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais).
No início, Stephanie Diepeveen (ODI) afirmou que as infraestruturas públicas digitais possuem alguns elementos comuns, como um conjunto de sistemas compartilhados, padrões abertos e interoperáveis, orientação aos bens comuns.
Diepeveen também destacou as diferenças entre “a IPD como conceito” e a “IPD como conjunto de práticas”. No momento de transição dos conceitos para políticas públicas, há um conjunto de presunções não explicitadas. “Tudo vem com um custo. A implementação gera quais exclusões?”.
Beatriz Vasconcelos (UCL) abordou a questão da origem conceitual da IPD. O Brasil tratou, por muito tempo, de governo digital, digitalização de serviços e “governo como plataforma”. “O governo da Índia trouxe um conceito que não é exatamente novo”, afirmou Beatriz. “O conceito de infraestrutura é muito importante”, disse Beatriz, ressaltando que nenhuma infraestrutura é neutra. Fazendo um paralelo com as estradas, Beatriz ressaltou que as escolhas sobre a construção de estradas envolvem um conjunto de efeitos. “Há sempre uma direção”, disse.
Vasconcelos também abordou a importância do método de “pensar em camadas”. Uma infraestrutura pública digital sempre envolve um software compartilhado, “mas sempre há algo em cima e algo embaixo”.
Por fim, uma polêmica central é o que configura o elemento público. “Público não é governo, mas é o bem comum”, afirmou. No entanto, a forma de construção das regras de governança dos bens comuns torna-se elemento crucial. “Pensar tudo isso numa dimensão de valor público é o que torna o impacto maior”. Além do plano conceitual, há um plano político sobre as consequências da implementação de projetos de IPD. “Há riscos de autoritarismo”, lembrou Beatriz.
Em sua fala, Francisco Gaetani (MGI) tratou do surgimento do interesse governamental para IPD. “Se o mundo está todo indo para a mesma direção, há alguma coisa errada”, lembrou Gaetani. “No setor público, nós temos uma grande dificuldade de aprendizado cumulativo em políticas públicas. Isso nos ajudou a tentar problematizar a transformação do Estado incorporando a dimensão digital”, disse Gaetani.
Segundo Gaetani, quando a Índia inaugurou uma conversa internacional sobre IPD em 2023, o Brasil passou a pensar quais seriam as experiências já existentes de IPDs que poderiam ser analisadas à luz do conceito. “Fizemos duas missões na Índia para aprofundar o tema”, relatou Gaetani.
Conforme argumentado por Gaetani, muitas políticas públicas precisam ser “calçadas”. Gaetani lembrou do conceito de policy scaffolding, que ajuda a pensar nos “andaimes” ou “calços” que vão permitir que uma obra seja iniciada. “Não basta só defender uma causa e conseguir dinheiro”, lembrou Chico Gaetani. “Empurrar esse assunto para o topo da agenda nacional é um dos nossos papéis no MGI”, afirmou Gaetani, que lembrou a importância do diálogo com governos de outros países, com as organizações sem fins lucrativos e com os engenheiros das grandes empresas de tecnologia.
Astha Kapoor (Aapti Institute) abordou os problemas concretos de implementação de IPDs, especialmente na dimensão de protocolos abertos. “Nós estamos em um estranho processo no qual os protocolos abertos acabam facilitando o poder das empresas”, pois muitos dados produzidos por IPDs servem aos interesses de empresas como Google.
“Nós precisamos pensar mais no valor dos dados que nós geramos nas plataformas e softwares. Nós conseguimos pensar esses dados como bens comuns?”, questionou Astha. A questão, para Kapoor, não é tanto sobre abertura dos dados em si (protocolos e padrões abertos) mas “governança para abertura” (governance for openness).
Atualmente, as IPDs são desenhadas para interoperabilidade e há uma camada política nas negociações em torno da interoperabilidade entre grandes organizações e fluxos internacionais de dados. “Seria possível desenhar sistemas de interoperabilidade que tragam menos custos políticos de negociação?”, questionou Astha.
“O que a Índia fez é notável e continuará, mas o Brasil tem a chance de refinar ainda mais o conceito e a experiência de infraestrutura pública digital”, concluiu a diretora do Aapti Institute.
Em sua fala, Miriam Wimmer (ANPD) reforçou uma análise complementar sobre confiança pública e salvaguarda de direitos digitais. “O Brasil é um país com um longo histórico de direitos digitais”, lembrou Miriam, jogando luz ao Marco Civil da Internet (2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (2018).
“No Brasil nós temos um direito fundamental à proteção de dados pessoais incluído em nossa Constituição”, lembrou Miriam. “Esse direito alcança uma dimensão individual e uma dimensão social”. Partindo do impacto da LGPD para formulação de políticas públicas, Miriam destacou o modo como os princípios da proteção de dados pessoais (princípio da necessidade, princípio da adequação, princípio da finalidade, princípio da transparência) irradiam efeitos para o debate de infraestrutura pública digital.
“Quando falamos de um direito fundamental, nós queremos dizer que o indivíduo deve estar no centro. Isso não significa que ele deve consentir. Autodeterminação informacional é mais amplo que isso”, pontuou Miriam Wimmer. Concluindo, Miriam lembrou dos precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre “devido processo informacional” e como isso pode impactar políticas de infraestrutura pública digital.
Como fechamento do painel, Kapoor e Gaetani debateram o real impacto do G20 nos processos domésticos. Gaetani reforçou a dança delicada entre o local e o global (um interplay) que o G20 habilita. Beatriz também reforçou a complexidade de pensar a participação em infraestruturas que são para múltiplos fins, como no caso das identidades, o que apresenta dificuldades para a dimensão participativa. No entanto, como notado pelos especialistas, tanto a participação quanto a proteção de dados pessoais devem ser pilares da infraestrutura pública digital.
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