Entre os dias 21 e 23 de fevereiro de 2023, atores de diferentes países e setores se reuniram na sede da UNESCO, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em Paris, na França, para debater uma proposta de diretrizes para a regulação das plataformas digitais. A iniciativa inédita vem dentro de um contexto em que  diferentes instâncias da ONU estão trabalhando para a criação de diretrizes relativas ao uso da Internet em geral, cuja expectativa se concentra em torno do Pacto Global Digital.

O evento da última semana, chamado Internet for Trust, teve um primeiro dia de atividades paralelas propostas por diferentes organizações intergovernamentais e da sociedade civil, seguido de dois dias de painéis organizados pela UNESCO. O objetivo final da conferência foi colher reflexões e subsídios para evoluir nas diretrizes, que por sua vez devem apoiar os Estados-membros a construírem suas próprias legislações sobre as plataformas.

A segunda versão do documento está aberta para comentários até dia 8 de março, e o processo deve ser estendido ao longo do ano. Seguindo a agenda de liberdade de expressão e acesso à informação confiável, a UNESCO partiu do relatório Our Common Agenda, do Secretário-Geral das Nações Unidas, para abrir o dia zero em Paris, sob a ótica da informação como bem público. Outras entidades participantes, como o Forum on Information and Democracy, reconheceram a legitimidade da UNESCO para liderar esse movimento e divulgaram a ideia de construir uma espécie de “observatório da democracia”. 

O Brasil, representado em várias mesas, foi protagonista da Conferência devido aos recentes acontecimentos anti-democráticos no país, assim como pela história multissetorial no desenvolvimento de regulações e práticas para a Internet – lembrando também a chegada dos 10 anos do Marco Civil da Internet em 2014. A diretora do Internetlab, Fernanda Martins, trouxe resultados de pesquisa que apontam como um dos principais problemas do combate à desinformação a credibilidade (ou falta dela) de fontes na visão da população. Pelo ITS-Rio, a diretora Celina Bottino relembrou a atuação do Tribunal Superior Eleitoral durante as eleições presidenciais de 2022, período em que foram feitas parcerias com as plataformas e foi aberto um canal de denúncias a serem analisadas para a remoção de conteúdo.

Dia zero – as movimentações da sociedade civil 

O dia zero da Conferência abrigou uma série de painéis e iniciativas diversas, organizadas pela própria UNESCO e por organizações da sociedade civil, inclusive do Brasil. No geral, a tônica do dia foi se ancorar no documento e no espaço proposto pela UNESCO para abordar questões para além dele, a partir de experiências locais e regionais diversas – exemplos de temas discutidos foram regulação de Inteligência Artificial, transparência algorítmica, proteção da infância, além de iniciativas específicas para a recuperação e manutenção da integridade da Internet.

A diretora do ICT Africa, Allison Gillwald, por exemplo, destacou a assimetria de informações e a concentração no Norte Global, o que demanda uma regulação econômica e uma governança global focada em bens públicos digitais. Gabriela Ramos, representante da própria UNESCO, destacou  que a transparência não pode ser apenas técnica, mas sim estar presente em todo o processo, inclusive com explicação significativa sobre funcionamento de algoritmos, através de sistemas de accountability. Ramos ressaltou que os próprios Estados-membros estão pedindo monitoramento em relação a relatórios de impacto.

Laura Schertel Mendes, da Comissão de Direito Digital da OAB Federal, destacou o processo brasileiro para a regulação de IA, através do trabalho da Comissão de Juristas criada pelo Senado Federal brasileiro e que se estendeu pela maior parte do ano passado. Outra iniciativa que se apresentou foi a Global Network Initiative (GNI), através do representante Jason Piemeler. Como uma organização multissetorial, a GNI também cria mecanismos de supervisão de aplicação de suas próprias diretrizes, voltadas à transparência e accountability de empresas e com o objetivo final de promover a liberdade de expressão e a privacidade.

Ainda no dia zero, falou Catalina Botero, representando o Comitê de Supervisão da Meta (Oversight Board), a favor de uma regulação mínima, mas sujeita à supervisão independente e que demande um relatório de impacto em direitos humanos. Foi apresentado também o projeto Social Media 4 Peace, da UNESCO e financiado pela União Europeia, voltada para aprimorar a expertise local em diferentes países para a moderação de conteúdo. Até o momento, o projeto se estende por quatro países piloto: Quênia, Bósnia-Herzegovina, Indonésia e Colômbia. E, por fim, representando o Brasil em contextos locais, o influenciador digital Felipe Neto fez uma fala de recapitulação dos últimos anos no país, sobre as ameaças democráticas e o conturbado processo eleitoral de 2022, bem como as discussões regulatórias em curso no país

Os debates da Conferência para além do texto 

Os dois dias oficiais do evento foram estruturados a partir dos conteúdos da proposta atual de diretrizes para a regulação de plataformas: dessa forma, cada painel buscou endereçar questões prementes sobre escopo da regulação, liberdade de expressão, relatórios de transparência, empoderamento do usuário, accountability, desafios técnicos a serem enfrentados, etc. Buscando materializar o espírito multissetorial da discussão, ao final de cada painel, abria-se a palavra para comentários do público, divididos por setor (governos, setor privado, academia e comunidade técnica, e sociedade civil). Em alguns momentos, chamou a atenção o fato de não haver manifestações do setor privado.

Para além do conteúdo do documento, refletido na estrutura dos painéis, alguns pontos chamaram a atenção como recorrentes ao longo de toda a Conferência, dos eventos paralelos às falas de muitos dos painelistas: além das múltiplas discussões sobre transparência, seu significado, limites e forma de operacionalização, o ponto mais destacado – e não coberto pelas guidelines – foi o modelo de negócio de muitas das plataformas visadas, baseado em camadas de cliques e engajamento e sistemas de recomendação apontados como pouco transparentes. Dessa forma, embora menos próximos do escopo do documento discutido, assuntos como regulação assimétrica e antitruste, regulação de inteligência artificial e design, dentre outros, foram apontados como centrais a partir de uma lógica mais estrutural do debate, dentro da qual a moderação de conteúdo é uma parte pequena. 

Com o início oficial do evento no dia 22, o Brasil seguiu tendo protagonismo, com uma mensagem enviada pelo presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, à abertura do evento, e lida pelo Secretário de Políticas Digitais, João Brandt. Em sua carta, Lula declarou apoio à iniciativa da UNESCO e reforçou a importância de esforços globais que lidem com as questões de conteúdo na Internet – incluindo uma participação plural dos diferentes setores da sociedade. Felipe Neto falou novamente, no primeiro painel do dia, questionando os sistemas de recomendação de conteúdo das plataformas e clamando por mecanismos efetivos de responsabilização das mesmas.

Felipe manifestou-se após Maria Ressa, jornalista vencedora do prêmio Nobel da Paz, que fez uma fala de contexto sobre mudanças estruturais na lógica de comunicação e informação, em que os gatekeepers não são mais os jornalistas, mas sim as empresas de tecnologia, cujo modelo de funcionamento pode acabar incentivando a produção e disseminação de desinformação e conteúdo nocivo. Contrapontos bastante balanceados apareceram em falas sobre liberdade de expressão, especialmente por parte do time de antigos e atuais Relatores para a Liberdade de Expressão da ONU e da OEA, David Kaye, Irene Khan, Catalina Botero e Pedro Vaca Villareal.

Além de falas sobre alguns pontos específicos do texto proposto, a tônica das contribuições foi a de resgatar e prestar atenção aos padrões internacionais de direitos humanos relativos à liberdade de expressão, para que haja diálogo maior da proposta da UNESCO com os sistemas internacionais e regionais de proteção e com o fim último de proteção desse direito fundamental contra regulações amplas e imprecisas que possam resultar em restrições indevidas. Irene Khan também ainda reforçou a necessidade de consistência pelas plataformas, ou seja, que as aplicações das regras sejam as mesmas em diferentes países. 

No segundo e último dia do evento, houve uma fala bastante representativa do Sul Global, pelo diretor da Paradigm Initiative, Gbenga Sesan, que fez uma retrospectiva de como a Internet se tornou um lugar de “jardins murados”, em oposição à sua proposta original de abertura e universalidade. Sesan destacou também que muitos dos debates ocorridos no Norte Global acabam sendo “mal traduzidos” para o Sul, chegando como ideias de controle, e não accountability. Seguindo sua fala, a Secretária-Geral da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), Kerri-Ann Jones, falou da importância de uma maior cooperação regulatória internacional, que tenha coerência, monitoramento das regulações, mais agilidade e autoridades independentes. 

O Ministro Luís Roberto Barroso foi o último brasileiro a falar no evento e expressou sua opinião sobre qual deveria ser uma regulação adequada ao tema, fortemente ancorado nas discussões que ocorrem no Brasil: Primeiramente, Barroso apontou o que afirmou que seriam três consensos da Conferência: i) desinformação como ameaça aos Direitos Humanos; ii) o fato de que as “fake news” alimentam o extremismo; e iii) e que a Internet não é (ou não deve ser) mais um espaço livre de regulação. Em seguida, apontou alguns elementos concretos que julga serem essenciais, como enfrentar o comportamento coordenado nas plataformas, ligados à desinformação e conteúdo ilegal; ter uma regulação governamental de princípios e regras básicas; ter uma autorregulação no sentido dos códigos de conduta das plataformas, com accountability e órgão revisor independente; e ter uma autorregulação regulada a partir de mudanças no regime de responsabilidade de plataformas sobre conteúdos de terceiros, o que, na prática, representa uma alteração do art. 19 do Marco Civil da Internet, pauta complexa e longe de consensual entre os múltiplos atores que se envolvem nesse debate há muitos anos no país. 

No Brasil, recentemente o debate voltou a ganhar força em razão de iniciativas do Ministério da Justiça como resposta aos ataques de 08 de janeiro em Brasília, e é necessário que se atinja um equilíbrio entre a urgência no desenho de medidas para salvaguardar a democracia e a integridade do debate público, e a cautela quanto a propostas potencialmente contraproducentes diante de um problema multifacetado, que idealmente deverá ser abordado de forma multissetorial e a partir de uma agenda programática de médio prazo.

A Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa reconhece os esforços da UNESCO e de toda a comunidade internacional nessas questões, e recebe com satisfação a proposta de extensão do processo, já que um debate amplo se faz necessário para avançar em um modelo regulatório proporcional e baseado nos direitos fundamentais. A organização continuará atuando em conjunto com a Coalizão Direitos na Rede para que soluções adequadas possam ser encontradas na regulação de plataformas e contenção de comportamentos ilícitos no Brasil, primando pela confiança dos cidadãos, respeito às liberdades civis e integridade democrática dos sistemas informacionais.

 

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