Câmeras Corporais: Nota técnica, audiência pública e a contribuição da Data Privacy Brasil
No dia 1º de setembro de 2023, a Data Privacy Brasil esteve presente com fala de Pedro Saliba, coordenador da área de Assimetrias e Poder na audiência pública nº 01/2023 - CNM/CGMTEC/DSUSP/SENASP/MJSP, referente ao projeto de norma técnica sobre câmeras corporais sendo desenvolvida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
No dia 1º de setembro de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública realizou a Audiência Pública nº 01/2023 – CNM/CGMTEC/DSUSP/SENASP/MJSP, referente ao projeto de norma técnica sobre câmeras corporais sendo desenvolvida pelo órgão. A Data Privacy Brasil esteve presente com fala de Pedro Saliba, coordenador da área de Assimetrias e Poder. A audiência está disponível no YouTube na íntegra e aqui compartilhamos um resumo produzido pela equipe da Data. Confira também abaixo o arquivo com nossa contribuição por escrito.
A metodologia de construção da Nota Técnica
O Projeto de Norma Técnica da Secretaria Nacional de Segurança Pública atinente às Câmeras Corporais, visa o estabelecimento de requisitos técnicos mínimos de qualidade e desempenho aplicáveis ao fornecimento destes itens para a atividade profissional de segurança pública.
Desenvolvido pelo Ministério da Justiça, no âmbito do programa Pró-Segurança – Programa Nacional de Normalização e Certificação de Produtos de Segurança Pública. Organizado em três pilares: Operacional – desenvolve normas técnicas e certificação de materiais quando determinado por norma; Comunicação – operacionalizada através da Rede Sinesp – Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, responsável pelo diálogo direto com profissionais de segurança, canal para recebimento de denúncias e informações sobre o funcionamento de equipamentos e Tecnologia – tem a atribuição de avaliar novas tecnologias, realizar ensaios em equipamentos.
A condução do evento foi feita por Fábio Ferreira Real, integrante da diretoria do Sistema Único de Segurança Pública, coordenador geral substituto de Modernização e Tecnologia, gerente do Pró-Segurança – Programa Nacional de Normalização e Certificação de Produtos de Segurança Pública. Na sequência da abertura e pronunciamento inicial, Márcio Julio da Silva Matos, coordenador-Geral de Governança e Gestão do Sistema Único de Segurança Pública, saudou a Isabel Figueiredo coordenadora do SUSP e Flávio Dino, atual ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil e parabenizou a todos pela audiência. Stefan Machado, especialista em normatização e representante da Anatel, também compôs a mesa.
A nota técnica seguiu uma metodologia em três etapas para sua elaboração:
Etapa 1 – Planejamento, realizada internamente pelo programa Pró-segurança, realiza-se a revisão bibliográfica, catalogação de normas e padrões mundiais, e pesquisa de mercado. Foram analisadas mais de 100 categorias/atributos dos equipamentos disponíveis para venda e a síntese/destaque das informações, tanto técnicas quanto mercadológicas foram apresentadas no primeiro momento da audiência. Na apresentação dos testes, chamaram a atenção os Cenário 1, quanto a indisponibilidade de rede para transmissão de informações, e Cenário 4, quanto a terceirização da gestão e armazenamento de informações. Devemos ler com mais atenção para tecer considerações na nossa contribuição.
Etapa 2 – Foi ouvido um corpo de técnicos notáveis no assunto, a lista e as contribuições dos mesmos serão publicizadas no relatório final, disponibilizado no site do Ministério da Justiça. Os profissionais foram consultados para a identificação do que é basilar para todos os operadores de defesa social. Geralmente são realizadas duas a três reuniões, entretanto o Ministério admite que o procedimento para essa norma foi encurtado. Destacaram também a possibilidade de a câmara técnica ser alongada, e a expansão da audiência pública.
Etapa 3 – Realização de audiência pública, que contempla o debate com a sociedade e com o mercado. O passo seguinte é a Consulta Pública Online, que ficará disponível por 30 dias através da plataforma Participa + Brasil. A tramitação final passa pela análise de assuntos legais e legislativos e Procuradoria Geral da União. Na fase final o INMETRO reconhece a competência da certificação e os laboratórios aptos para o programa de creditação dos equipamentos.
Considerações sobre o discurso do representante do Ministério da Justiça
No discurso de Fábio apareceram muitas vezes a preocupação de não gerar reserva de mercado em relação aos protocolos mínimos do hardware, impossibilitando segmentos de mercado de concorrerem a contratações públicas. A informação sobre os atributos analisados e apresentados ao público na audiência não serão disponibilizadas em respeito ao segredo de negócio e exposição das empresas que as cederam.
Além disso, Fábio Real destaca o papel do consenso entre as partes interessadas, criada pelo equilíbrio entre o mercado e a necessidade do governo, com intuito de criar uma “norma técnica neutra”. Destaca-se o papel estratégico da NT para contratações públicas, uma vez que a regulação estabelece diretrizes mínimas dos equipamentos e cada estado e município pode fazer especificações conforme a sua necessidade.
O papel da Anatel
O representante da Anatel, Stefan, parabenizou o movimento do Pró-Segurança em interagir com outros agentes reguladores. Destacou a importância de um ambiente regulatório mais eficiente, para disponibilidade de produtos em compliance com os órgãos envolvidos.
Na sequência foi apresentada a competência da Anatel quanto a certificação de telecomunicações, que são expedidas pelo órgão ou por aceitação com base em acordo de reconhecimento mútuo. Destacou os módulos componentes das câmeras corporais incorporarem dispositivos de comunicação, dando como exemplo a Resolução 680 da Anatel para radiocomunicação de radiação restrita.
A proposta da nota técnica é que cada fabricante possa homologar apenas um módulo, conseguir um selo e encaminhar as especificações do sistema para o fabricante e depois homologar o conjunto via Ministério da Justiça. Disponibilizou o canal [email protected] para o encaminhamento de dúvidas.
A participação da sociedade civil e empresas na audiência pública
As falas da sociedade civil e das empresas foram provocadoras e emblemáticas. A centralidade do debate girou em torno da definição do que seria uma câmera corporal: dispositivo de gravação ou coletor de prova processual? As manifestações destacaram o papel central da regulação para cumprimento da cadeia de custódia da prova.
“Uma câmera no peito de um policial militar é um coletor de evidência e deve obedecer ao ordenamento jurídico brasilero” a frase foi dita por Juliana Lopes Maia – membra da Anacrim – participante do grupo de estudo sobre cadeia de custódia e evidência digital.
Segundo Juliana os itens 6.1.34 são incompatíveis com a cadeia de custódia estabelecida pelo artigo 158b no Código de Processo Penal e NBR/ABNT 27037 – Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital, apontando que sua leitura na íntegra é imprescindível a todos que pretendem atuar na área de investigação cibernética e Forense Digital. Destacou a norma de marcação de data e hora, com precedente do STF quanto a rejeição de registros audiovisuais como prova por falta de auditabilidade desses itens.
Bruno Dias, policial militar do estado de São Paulo, foi o segundo inscrito e propôs a compreensão de que equipamentos que captam áudio e dados são um coletor de evidências. Sugeriu a criação de um sistema integrado de custódia de provas digitais versus coletores, seguindo o protocolo estabelecido no pacote anti crime para coleta, armazenamento, processamento e descarte. “O descarte é importante, o que fazemos com relação a isso é produzir provas. Produzir somente provas, não gastar milhões e não servir ou ser anulado no judiciário”.
Thiago Duarte, gerente de contas para região centro-oeste, norte e nordeste da Axon Enterprise, sugere a cooperação com as polícias dos Estados Unidos e Londres para troca de aprendizados quanto ao estabelecimento de políticas públicas relacionadas às câmeras corporais. Destacou também a importância do estabelecimento da cadeia de custódia da prova: “sem uma cadeia de custódia forte e íntegra, todo o esforço de captação pode ruir”.
Thiago fez críticas quanto à amplitude do ângulo de captação das câmeras para não gerar reserva de mercado. Segundo ele, enquanto meio de prova, é importante que se possa garantir que as imagens estejam o mais próximo possível do que foi visto pelo policial, que é um ser humano com limitações. A preocupação da empresa é com o desbalanceamento da prova, com o ganho de luminosidade, por exemplo, e como o policial será julgado.
Em resposta, o representante do Ministério da Justiça destaca que o papel da nota técnica é orientar critérios mínimos da contratação, entretanto cada órgão poderá estabelecer configurações superiores. Disse ainda que existem outros atores de interesse na análise das imagens, como os peritos que podem se valer da visão noturna para realização da investigação.
Paulo Policastro da empresa Powerconn, pioneira no desenvolvimento das câmeras policiais no Brasil, foi a fornecedora do material para PMSP, destaca que as as soluções de coletas de provas devem estar alinhadas com o ordenamento jurídico brasileiro. Sendo preciso modelar a regulação e tecnologias de acordo com o sistema de justiça por todo o processo. Sugere a criação de um sistema que permita o acesso às imagens de forma eficiente e auditável, com ferramentas de validação da integridade da prova vinculadas a dockstation.
Policastro discutiu ainda as vantagens em utilizar o armazenamento híbrido diante das limitações de transporte da evidência para a nuvem e chamou atenção para a perda de autonomia da bateria ao longo de um ano e quais os módulos e funcionalidades das câmeras serão compatíveis. Enfatizou também a importância de olhar com cautela para requisitos e protocolos de segurança cibernética, questionando quais serão os testes a que as body cams serão expostas.
O Ministério da Justiça indicou a resolução ou portaria da Anatel publicada em 2015, que trata de situações de urgência e emergência no fluxo de dados, é possível negociar com as operadoras formas de transmissão diferenciadas. Cada órgão contratante deve estabelecer acordos com operadora que contrata.
A pergunta de Sergio Hernandes, perito autônomo que atua em casos criminais no Brasil: “A câmera corporal coleta imagens e vídeos ou prova digital?” orientou sua fala. Disse sua preocupação pela nota técnica não ter contemplado o artigo 158 do Código de Processo Penal, pois a cadeia é a história cronológica da prova, seja digital ou material.
Hernandes, que está trabalhando no Caso de PM morto em quartel coloca em xeque uso de câmeras corporais em investigações, indica que houve adulteração na prova. O sistema gerenciado pela PM permite editar as imagens. Nos requisitos técnicos da norma tópico 1. 6.32 tem uma exigência de que o sistema não permita que as gravações sejam editadas, entretanto o Ministério da Justiça esclarece que a especificação é local.
Flávio Fernandes da Anacrim insiste na intersecção entre as especificações da nota técnica e a cadeia de custódia da prova. Citou o caso de uma colega de Associação que foi buscar imagens das câmeras em um caso em que trabalhava e as imagens tinham sido apagadas após cerca de 60 dias. Em resposta o MJ disse que o tempo de armazenamento, não é foco da nota técnica mas de uma diretriz. Estão construindo a avaliação da conformidade do produto, mas não o gerenciamento: tempo de armazenamento, tipo de equipe, etc, vai ser estabelecido em uma diretriz.
Em seguida, Hilton Kevin de Carvalho, representante da Hikivision, maior fornecedor de câmeras corporais no mercado brasileiro insiste na garantia da cadeia de custódia. Chama atenção para o perigo iminente do item 6.1.33 da norma técnica que indica a possibilidade de edição de algoritmos abertos. Sugeriu a criação do hash para identificação única, em conjunto a um algoritmo de domínio público com chave privada para certificação de arquivo original. Além desse tópico, Hilton também inquiriu sobre a durabilidade da bateria das câmeras e funcionalidades.
O Coronel Francisco Neto, responsável pelo case da Polícia Militar de São Paulo trouxe o histórico do programa e destacou o sucesso do mesmo, reforçou a integridade da polícia e das imagens e indicou que só há edição das gravações para realização de treinamentos para a própria polícia. Além desses apontamentos, pede que sejam considerados testes e especificações para presilhas de fixação no fardamento.
A última contribuição pública foi da Data Privacy Brasil na fala do Pedro Saliba, que destacou a importância da disponibilização de dados para pesquisas e elaboração de políticas públicas. Mencionando também o projeto recém lançado da Data, sobre câmeras corporais na segurança pública: parâmetros jurídicos para o uso secundário de dados, que tem como objetivo desenvolver parâmetros para o uso secundário de dados pessoais, coletados por câmeras corporais, sob orientação do devido processo legal e direitos fundamentais. A Data Privacy Brasil também enviou uma contribuição por escrito, que pode ser lida na íntegra aqui.
Os inscritos da lista virtual na sequência não estavam presentes, sendo encerrada a audiência.
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