Notícia | IA com Direitos | Plataformas e Mercados Digitais
Apoiadores de Marçal usam IA para gerar cortes virais automaticamente
“A galera acha que foi calculado, porque foi perfeito o negócio da carteira de trabalho”, explicou Pablo Marçal em entrevista ao Flow Podcast, ao comentar o episódio em que Guilherme Boulos (PSOL) perdeu a compostura após ser provocado e deu um tapa no documento — momento replicado milhões de vezes em cortes distribuídos por apoiadores do candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo.
“O cara [Boulos] fala assim: ‘Padre Kelmon’, querendo lacrar. ‘Vou aqui fazer um corte.’ Aqui a faca, tio. Você esqueceu que a faca fica comigo”, continuou Marçal na entrevista de 28 de agosto.
Além de ser parte fundamental da estratégia digital da campanha do ex-coach, o compartilhamento de vídeos curtos é também o motivo que levou à decisão provisória na Justiça Eleitoral pela suspensão dos perfis dele nas redes.
Ferramentas de inteligência artificial têm auxiliado apoiadores de Marçal a inundar as redes com cortes do candidato.
Em comunidades de autodenominados “clipadores”, Aos Fatos identificou posts com sugestões de aplicativos capazes de automatizar a geração de dezenas de cortes a partir de vídeos longos.
Essas ferramentas garantem que uma enxurrada de conteúdos virais tome as redes logo após debates e entrevistas com a participação do ex-coach.
A partir de trechos de vídeos mais longos, os cortes são selecionados e editados para captar a atenção dos usuários e viralizar em redes como TikTok, Instagram, YouTube Shorts e Kwai.
No caso das IAs especializadas na criação desse tipo de conteúdo, os trechos com maior potencial de viralização são sugeridos de forma automática, bastando que o usuário forneça o link do vídeo original.
Os programas costumam propor títulos e legendas e, no caso dos mais sofisticados, também possuem interfaces integradas às redes sociais, para facilitar a publicação.
Apesar da conveniência, clipadores mais experientes costumam recomendar que a edição seja finalizada de forma manual, para garantir originalidade ao conteúdo — o que aumenta a probabilidade de agradar aos algoritmos.
A edição adicional e a falta de uma regulação que garanta a rotulagem de conteúdos gerados por IA tornam ainda mais difícil verificar quais cortes adotaram a tecnologia, mesmo que de forma parcial. Discussões sobre o tema, porém, são frequentes nos grupos de clipadores.
Na comunidade “Cortes do Marçal” do Discord, por exemplo, os administradores chegaram a fazer um post sobre o assunto em um dos canais de dicas para quem está começando, no qual sugeriram três ferramentas: OpusClip, 2short.ai e vidyo.ai.
Aos Fatos avaliou o funcionamento das ferramentas OpusClip e 2short.ai. Por não oferecer período de teste gratuito e ter a mensalidade mais alta (R$ 115 por mês), a terceira concorrente é menos popular.
Mais conhecida das três, a OpusClip permite gerar clipes a partir de vídeos falados, como podcasts, conteúdos educativos e palestras motivacionais. Após um período gratuito de testes, a assinatura do software custa a partir de US$ 9 mensais.
Embora tenha se mostrado menos precisa ao lidar com conteúdo em português, a 2short.ai tem como vantagem a oferta de um plano gratuito, que oferece a análise de 30 minutos de vídeos por mês. Para volumes de edição maiores, a mensalidade custa a partir de US$ 9,90.
Para os testes nas duas plataformas, a reportagem forneceu o link do YouTube da entrevista concedida por Pablo Marçal à rádio AuriVerde Brasil, que tem linha editorial de extrema direita. O vídeo, de 43 minutos, foi gravado no dia 20 de agosto.
OpusClip
No teste, a OpusClip entregou 27 cortes da entrevista em questão de segundos. Entre os resultados foi possível identificar notícias falsas e ofensas proferidas pelo candidato.
Dois dos cortes criados pela ferramenta destacam uma desinformação sobre a facada que Bolsonaro recebeu durante a campanha eleitoral de 2018. Nos trechos, o apresentador do programa, Alexandre Pittoli, insinua que o autor da agressão, Adélio Bispo, teria agido sob o comando de um político — o que já foi descartado pelas investigações sobre o caso.
“Se a gente entender quem é esse medalhão da política brasileira que contratou Adélio Bispo, nós muito provavelmente daremos início a um novo momento político no Brasil”, declarou.
A mentira repetida no vídeo é legitimada pela avaliação que a IA fez de seu potencial de viralização, que recebeu nota 98. A análise avalia numa escala de 0 a 100 a partir de critérios como atratividade, fluidez e relevância do trecho selecionado.
“Este vídeo se aproxima bem de uma conexão pessoal ao expressar o desejo de mudança e a busca pela verdade”, considerou o software, ignorando que a afirmação feita pelo apresentador é falsa.
Outro clipe gerado pela IA destaca a mentira, dita por Marçal, de que não havia presença governamental na ajuda ao Rio Grande do Sul durante as enchentes de maio.
A análise deu nota 89 para o potencial de viralização do corte e sugeriu aumentar o apelo do conteúdo acrescentando “uma discussão sobre o papel do empreendedorismo na recuperação econômica”.
Em um dos clipes com a nota mais alta, a edição automática realçou um trecho da entrevista em que Marçal utiliza um palavrão para se referir ao atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), seu adversário na corrida eleitoral.
“Tem 192 mil pessoas esperando cirurgia, e esse povo focado em eleição. Tem 447 mil pessoas esperando um exame, e esse bosta [sic] desse Nunes não dá conta de colocar… fazer um mutirão, caramba!”, afirma o ex-coach.
O potencial de viralização desse corte ganhou nota 98 da ferramenta, que ainda sugeriu que o vídeo poderia “ser ainda mais cativante se começasse com uma afirmação impactante que explique o absurdo da situação em um tom mais dramático”.
Em outro clipe criado pela IA, o ex-coach chama o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, de “vagabundo”.
2short.ai
Também recomendado pela comunidade de clipadores de Marçal, o aplicativo 2short.ai criou 20 sugestões de cortes da entrevista do candidato à rádio AuriVerde Brasil. A primeira das peças apresentadas é justamente o trecho do vídeo em que Pittoli propaga a teoria da conspiração sobre a facada de Bolsonaro.
Mais simples do que a concorrente OpusClip, a 2short.ai não forneceu análise do potencial de viralização do corte na versão gratuita. Entretanto, a ferramenta também tende a favorecer a desinformação ao sugerir títulos sensacionalistas para as peças — ainda que em inglês.
Em um deles, a ferramenta gerou uma desinformação sobre o sistema eleitoral brasileiro que sequer tinha sido proferida de forma direta por Marçal. “243 mil votos roubados: em busca de justiça” é o título dado pelo app para um corte em que Marçal critica a anulação da sua eleição para deputado federal em 2022.
O site também tende a priorizar trechos em que Marçal é agressivo com adversários. “Você nem é homem para falar que tem ditadura na Venezuela, seu vagabundo. Vocês estão querendo que eu fale manso? Todo mundo que é nobre com vagabundo eu vou bater da cintura para baixo”, afirma o ex-coach em um dos cortes, se referindo a Boulos.
Marçal incentiva a produção de cortes com o argumento de que os criadores podem ganhar dinheiro com a monetização das plataformas. Até julho, o candidato organizou campeonatos de cortes no Discord, pagando prêmios aos clipadores com melhor desempenho.
Por causa da iniciativa, o ex-coach responde ao processo na Justiça Eleitoral que levou à decisão provisória pela suspensão de suas redes e pode levar à cassação do registro de sua candidatura, já que a legislação proíbe a remuneração por engajamento.
Aos Fatos procurou as empresas responsáveis pelas duas ferramentas testadas, mas não obteve retorno. A reportagem também pediu posicionamento à campanha de Pablo Marçal e à Rádio Auri Verde, e este texto será atualizado em caso de resposta.
Necessidade de regulação
Carla Rodrigues, coordenadora da área de plataformas e mercados digitais da associação Data Privacy Brasil, explica que as ferramentas de edição por IA utilizam o aprendizado de linguagem para “detectar o contexto, fazer uma análise do vídeo e identificar momentos de destaque para selecionar”.
Rodrigues lembra que esse tipo de solução tecnológica foi criada pensando no mundo do entretenimento, onde os cortes já faziam sucesso antes de Marçal importar o formato para a política e fazer dele “um meio de criar narrativas mais impactantes e atrair a atenção dos eleitores”.
No novo contexto, porém, ferramentas como a OpusClip “podem ajudar bastante na disseminação de desinformação”, o que exigiria encontrar soluções de mitigação de riscos.
“As plataformas digitais deveriam estar olhando de forma mais ética para seu conteúdo”, defende a pesquisadora, lembrando da necessidade de regulação do setor.
“Se todos os vídeos editados com essas ferramentas fossem rotulados, as pessoas saberiam que o conteúdo foi manipulado e poderiam compreender o contexto das edições, ajudando a evitar a propagação de desinformação”, sugere.
Texto escrito por Gisele Lobato e publicado originalmente no dia 13.09.2024 no site Aos Fatos.
DataPrivacyBr Research | Conteúdo sob licenciamento CC BY-SA 4.0