Falta de transparência e liberdade de imprensa e uso indevido de tecnologias traçam panorama do espaço cívico brasileiro em avaliação da OCDE
Relatório lançado em junho deste ano avalia as práticas e políticas do governo federal na última década e identifica ameaças ao espaço cívico.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que tem como objetivo potencializar o crescimento e contribuir para o desenvolvimento econômico dos países membros, divulgou em junho deste ano o relatório Revisão da OCDE sobre Governo Aberto no Brasil, Avançando para uma agenda de Governo Aberto integrada, em que avalia políticas e práticas a nível federal na última década e traça recomendações práticas para construção de um governo mais aberto, a partir da transparência e acesso à informação e a proteção do espaço cívico para participação e controle dos atos governamentais pela sociedade.
Vale destacar que em janeiro deste ano, após a adesão aos valores, visão e prioridades da OCDE pelo Brasil, considerado um parceiro chave da organização desde 2007, o pedido de acessão do país foi apreciado pelo Conselho, que estabeleceu os termos, condições e processo para sua concretização, dentre os quais estão a realização de análises aprofundadas dos comitês que compõem a Organização.
Neste artigo destacamos os desafios e oportunidades identificadas pelo Observatório do Espaço Cívico da OCDE na relação governo federal e espaço cívico brasileiro, definido por Ilona Szabó em seu artigo A Ágora sob ataque: uma tipologia para análise do fechamento do espaço cívico no Brasil, como:
“a camada entre o Estado, os negócios e a família, na qual os cidadãos se organizam, debatem e agem. (…) Espaço cívico também corresponde às interações positivas entre a sociedade civil e os governos, que em democracias representativas tendem a contribuir para tomadas de decisões mais responsáveis e transparentes.”(p. 2)
Estabelecido na Recomendação da OCDE do Conselho sobre Governo Aberto, em 2017, o conceito norteador desta análise, é definido como “uma cultura de governança que promove os princípios de transparência, integridade, controle e participação das partes interessadas em apoio à democracia e ao crescimento inclusivo.” Assim, a construção e fortalecimento do espaço cívico mostra-se fundamental para concretização deste princípio.
Infelizmente, o cenário atual brasileiro não corresponde a essa expectativa. Apesar de a análise reconhecer as recentes vitórias brasileiras após a criação e entrada em vigência da LGPD, como a inclusão da proteção de dados como um direito fundamental constitucional (PEC 17/2019), ao mesmo tempo aponta declínios em assuntos vinculados à cibersegurança e liberdades de expressão e de imprensa, acentuados pela manutenção de atos do poder executivo sob sigilo, inclusive sob justificativa de contrapor a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que são, na verdade, complementares.
Com dados do Índice Mundial de Liberdade de Imprensa do Repórteres Sem Fronteiras para 2021, o relatório aponta que o Brasil entrou na chamada “zona vermelha” após quatro quedas consecutivas, indicando uma deterioração do ambiente de imprensa no país. Mencionam os inúmeros ataques sofridos por jornalistas, que são deslegitimados e sofrem de censura a ataques físicos e sequestros. O relatório foi redigido ainda antes dos trágicos assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Amazonas, caso que se tornou mundialmente emblemático.
O ambiente digital foi apontado também dentro dessa esfera de ataques aos jornalistas: a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão registrou mais de 7 mil ataques virtuais por dia nas mídias sociais em 2020, relativos a postagens negativas e comentários depreciativos sobre jornalismo, mídia, jornalistas ou a imprensa no Twitter, Facebook e contas públicas do Instagram.
Dentre as recomendações da OCDE, além de medidas protetivas aos jornalistas, consta “garantir o acesso oportuno e igualitário a informações e dados, inclusive como dados abertos, para jornalistas e comunicadores para facilitar seu trabalho crucial como intermediários entre os cidadãos e o Estado, como vigilantes e como promotores de transparência e accountability”.
O uso emergente de tecnologias de informação para vigilância e inteligência apontou as iniciativas governamentais brasileiras sobre cruzamentos de bases de dados de diferentes órgãos públicos, assim como a coleta de dados biométricos, e a movimentação no Supremo Tribunal Federal para impedimento de algumas dessas ações, como no caso do IBGE.
A OCDE destaca a ação e as preocupações da sociedade civil nesse âmbito, citando uma carta aberta assinada por mais de 100 organizações civis que pede a proibição global das tecnologias de reconhecimento biométrico, afirmando que seu uso pode prejudicar os direitos à privacidade e proteção de dados, o direito à livre reunião e associação, liberdade de expressão e os direitos à igualdade e não-discriminação.
Pouco tempo após a escrita do relatório da OCDE, a sociedade civil brasileira lançou no Fórum da Internet no Brasil a campanha #TireMeuRostoDaSuaMira, pedindo o banimento do reconhecimento facial na segurança pública. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, essa tecnologia já está presente em 20 estados das cinco regiões do país. A Associação Data Privacy Brasil juntamente com outras organizações da Coalizão Direitos na Rede e a própria coalizão assinam a carta aberta da campanha.
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), assim, foi um ponto muito importante na revisão da OCDE, que aponta preocupação com a composição do corpo diretor de formação militar, inclusive citando estudo da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. Garantir a independência da ANPD é a primeira das recomendações emitidas pelo relatório dentro do tema “Proteger a privacidade e garantir a proteção de dados e a segurança cibernética”.
À época da redação, ainda não havia sido publicada a Medida Provisória Nº 1.124, de 13 de junho de 2022, que transforma a Autoridade em autarquia especial, o que sem dúvida é um avanço, mas que ao mesmo tempo cria uma expectativa sobre sua real concretização. O caráter transitório da natureza jurídica da ANPD está estabelecido no art. 55 da LGPD e sua independência já foi recomendada pela OCDE em outras ocasiões.
Outra recomendação do relatório diz respeito a “estabelecer colaboração intergovernamental para que as várias instituições envolvidas em questões de segurança digital e proteção de dados pessoais trabalhem juntas, não paralelamente, e que seus esforços sejam complementares, coordenados e alinhados”.
Nesse sentido, já há forte movimentação do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD) em iniciativas de fortalecimento de uma governança em rede, que para além de órgãos governamentais, busca inserir organizações não-governamentais (ONGs) dos campos de direitos digitais e direitos humanos; setor privado; entidades da sociedade civil e movimentos sociais; e outras entidades de direitos difusos e coletivos, para que a materialização de leis como a LGPD seja um esforço coletivo e descentralizado.
Fortalecimento da alfabetização digital, capacidade digital em todos os níveis do governo, e cibersegurança são recomendações do relatório que também vem sendo debatidas no âmbito do CNPD. Inclusive, seguindo a sugestão da OCDE de reversão das multas aplicadas pela ANPD em recursos de financiamento de programas que atingem essas pautas, atualmente destinadas ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).
Diante deste cenário a Revisão da OCDE sobre Governo Aberto no Brasil, traz análises e recomendações ao governo federal em seis temas: i) proteger a liberdade de reunião pacífica; ii) proteger a liberdade de expressão; iii) proteger a liberdade de imprensa, os jornalistas e os meios de comunicação social; iv) proteger a privacidade e garantir a proteção de dados e a segurança cibernética; v) proteger uma Internet aberta: a ascensão das mídias sociais e a ameaça da desinformação; e vi) proteger a igualdade e combater a discriminação. Por fim, a publicação traça um panorama sobre o ambiente propício para as organizações da sociedade civil no país, a partir dos princípios de transparência, accountability, integridade e participação.
Quanto à transparência, o relatório coloca que as iniciativas alvo são aquelas que proativamente divulgam informações e dados, sendo uma comunicação de mão-dupla: há o feedback e o encorajamento do diálogo facilitado pela Internet aberta e por um ambiente seguro para jornalistas.
A Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa segue atenta e em colaboração com a OCDE na construção de um ambiente saudável e colaborativo de atuação das organizações da sociedade civil, assim como na construção de uma cultura de proteção de dados pessoais, presente em todos os níveis do governo e da sociedade brasileira.
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