IA e direitos para quem trabalha
Com o avanço das tecnologias digitais e a crescente presença da Inteligência Artificial (IA) em diversos setores, surge uma preocupação central: como proteger quem trabalha em um ambiente de rápidas transformações? Confira no texto.
Com o avanço das tecnologias digitais e a crescente presença da Inteligência Artificial (IA) em diversos setores, surge uma preocupação central: como proteger quem trabalha em um ambiente de rápidas transformações?
Recentemente, o presidente Lula, em conjunto com o presidente dos Estados Unidos, publicou um manifesto
[1] [1] REDAÇÃO CUT. Lula e Biden lançam manifesto em defesa dos direitos do trabalhador. 20 set. 2023. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/lula-e-biden-lancam-manifesto-em-defesa-dos-direitos-do-trabalhador-9007. Acesso em: 19 ago. 2024.que reflete justamente essa preocupação, destacando a necessidade de resguardar os direitos trabalhistas diante das mudanças tecnológicas.
Nesse mesmo sentido, o esforço pela implementação do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA)
[2] [2] GOV.BR. Plano brasileiro de IA terá supercomputador e investimento de R$ 23 bilhões em quatro anos. Publicado em 30 jul. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2024/07/plano-brasileiro-de-ia-tera-supercomputador-e-investimento-de-r-23-bilhoes-em-quatro-anos. Acesso em: 19 ago. 2024.no governo Lula busca não apenas acelerar a inovação, mas também proteger quem trabalha em um mundo cada vez mais automatizado.
[3] [3] AGÊNCIA GOV. A nossa inteligência artificial tem que ser uma fonte de empregos e talentos, diz Lula. 30 jul. 2024. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202407/lula-desenvolve-ia. Acesso em: 19 ago. 2024.
O plano inclui a qualificação e requalificação de profissionais, a criação de novos empregos e o desenvolvimento de talentos, com o objetivo de garantir que os avanços tecnológicos não comprometam os direitos humanos e sociais.
Tais diretrizes do PBIA fazem parte de uma trajetória histórica de lutas — tanto coletivas quanto individuais — que buscam transformar o trabalho de uma simples necessidade de subsistência em uma fonte de realização pessoal e dignidade.
[4] [4] GOV.BR. Brasil e OIT assinam novo acordo para promover o trabalho decente e a justiça social na América Latina, África e Ásia-Pacífico. Publicado em 16 jun. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/abc/pt-br/assuntos/noticias/brasil-e-oit-assinam-novo-acordo-para-promover-o-trabalho-decente-e-a-justica-social-na-america-latina-africa-e-asia-pacifico. Acesso em: 19 ago. 2024.Não é demais ressaltar que a Constituição Federal estabelece como um dos seus fundamentos o valor social do trabalho, além de consagrar a sua dignidade como um pilar essencial para a justiça social, o que inclui a valorização do trabalho humano.
Nesse contexto de transformações, a Inteligência Artificial (IA) tem um grande potencial de impactar nas relações laborais em diferentes níveis, muitas vezes a partir do microtrabalho com baixa remuneração
[5] [5] VIANA BRAZ, Matheus; TUBARO, Paola; CASILLI, Antonio A. Microwork in Brazil: who are the workers behind Artificial Intelligence?. Report DiPLab & LATRAPS, 2023. Disponível em: https://diplab.eu/?p=2833. Acesso em: 19 ago. 2024., gerando uma cadeia de trabalho opaca
[6] [6] DIAS, Tatiana; SCHURIG, Sofia. O chão de fábrica da IA: Parte 3. 22 jul. 2024. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2024/07/22/inteligencia-artificial-classe-trabalhadora-sem-direitos-no-brasil/. Acesso em: 19 ago. 2024.e que ativamente impede a organização coletiva. A discussão sobre trabalho decente e sua valorização, portanto, precisa ser parte fundamental nos debates sobre regulação de IA e inovação tecnológica, conforme apontado na recente declaração do G20 sobre emprego.
[7] [7] AGÊNCIA GOV. Declaração do G20 sobre emprego é um avanço após dois anos sem consenso. 26 jul. 2024. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202407/declaracao-do-g20-sobre-emprego-e-um-avanco-apos-dois-anos-sem-consenso. Acesso em: 19 ago. 2024.
Em 2024, a discussão sobre IA e trabalho ganhou maior relevância, com a mobilização de diversos defensores da classe trabalhadora, especialmente com relação ao PL nº2338/2023.
[8] [8] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 2338, de 2023: Dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. 11 jul. 2024. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233. Acesso em: 19 ago. 2024.A partir dessas movimentações, o PL teve uma “guinada trabalhista” nas versões publicadas em junho
[9] [9] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 2338, de 2023. 11 jul. 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9640105&ts=1723640840522&rendition_principal=S&disposition=inline. Acesso em: 19 ago. 2024., que culminaram na inclusão, em seu artigo 2º, da “valorização do trabalho humano” como um dos seus fundamentos, alinhando-se com as disposições constitucionais brasileiras.
Na última versão do PL nº2338/2023
[10] [10] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 2338, de 2023. 11 jul. 2024. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9683716&ts=1723640844815&rendition_principal=S&disposition=inline. Acesso em: 19 ago. 2024., publicada em julho, ocorreram ainda mais avanços nessa agenda, resultando em um texto que prioriza os direitos humanos, a ética e a proteção de quem trabalha. O seu artigo 3º estabelece como princípio que o desenvolvimento, a implementação e o uso de sistemas de IA devem observar o princípio do crescimento e desenvolvimento sustentável, incluindo as garantias trabalhistas e proteção da trabalhadora e do trabalhador.
Em uma seção específica dedicada à proteção laboral, o artigo 56 do projeto estabelece que em cooperação com o Ministério do Trabalho, o Sistema Nacional de Governança e Regulamentação de Inteligência Artificial (SIA) e o Conselho de Cooperação Regulatória de Inteligência Artificial (CRIA), serão responsáveis por criar diretrizes para garantir o uso seguro e justo da IA no ambiente de trabalho.
Entre as outras medidas, estão a prevenção de demissões em massa sem acordo com os sindicatos e o fortalecimento da negociação coletiva para melhorar para garantir condições de trabalho justas, em conformidade com a Constituição e as leis trabalhistas. Ainda, o referido artigo também estabelece a promoção da saúde e segurança no trabalho e a necessidade de capacitação contínua para enfrentar as mudanças trazidas pela IA.
Uma iniciativa semelhante foi publicada pela Comissão Francesa de IA, apresentada sob o título “Our AI: Our Ambition for France” (“IA: Nossa Visão para a França”, em tradução livre). O relatório argumenta que a IA pode contribuir para aumentar a prosperidade coletiva, reduzir as desigualdades sociais e melhorar a qualidade do trabalho. Para alcançar esses objetivos, o documento sugere a implementação de políticas públicas, incluindo promoção da inovação e concorrência, apoio à requalificação profissional e formação contínua, de modo a garantir que todos possam se beneficiar dos avanços tecnológicos.
No cenário brasileiro, o PL dispõe sobre a obrigatoriedade de supervisão humana em decisões automatizadas, como no caso de demissões, para evitar que sejam tomadas exclusivamente por máquinas. De maneira similar, designa a realização de avaliações periódicas para identificar e prevenir possíveis danos da IA no ambiente de trabalho, o que demonstra uma significativa preocupação com o bem-estar das pessoas trabalhadoras.
Compreendemos que, diante dos desafios existentes, o PL nº 2338/2023 é pioneiro no reforço de garantir que o avanço tecnológico não seja alcançado às custas da classe trabalhadora. O texto, em sua última versão, apresenta um grande avanço na construção de uma agenda pautada em direitos
[11] [11] BIONI, Bruno; RIELLI, Mariana; ZANATTA, Rafael A. F. Regulação de IA no Brasil: onde estávamos, onde estamos e onde podemos estar. 30 abr. 2024. Disponível em: https://www.dataprivacybr.org/regulacao-de-ia-no-brasil-onde-estavamos-onde-estamos-e-onde-podemos-estar/. Acesso em: 19 ago. 2024., de forma a assegurar que o trabalho e sua relação com a IA respeitem e promovam a dignidade e os direitos humanos e fundamentais.
Com a retomada das discussões do PL 2338/2023 no Senado Federal no segundo semestre de 2024, e o descontentamento de parte do setor produtivo com a redação do art. 56 na versão de julho da CTIA, é crucial um olhar atento de toda a comunidade preocupada com o futuro dos direitos de quem trabalha. A IA já é uma realidade no ambiente laboral e tende a permear diversas relações laborais e de poder. Nesse sentido, o amplo engajamento cívico é urgente.
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