Aos indígenas é assegurado o respeito às tradições, cultura, auto-organização e usufruto exclusivo das próprias terras, como prevê o artigo 231 da Constituição Federal e o Estatuto do Índio. No entanto, a maior parte das terras indígenas (TIs) é afetada de alguma forma pela presença de invasores e exploradores. Entre as motivações estão a exploração mineral, extração de madeira, construção de rodovias e hidrelétricas e a pecuária ilegal, que tem crescido substancialmente nos últimos anos. 

A criação e venda de animais para a produção de alimentos ou matérias-primas é considerada uma das atividades econômicas de maior relevância no Brasil. Um levantamento elaborado pela Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas (Sire) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) destacou que, em 2020, o rebanho bovino brasileiro foi o maior do mundo, representando 14,3% do rebanho mundial, com 217 milhões de cabeças. 

Ao revés desse crescimento, denúncias de práticas ilegais no ramo têm sido recorrentes. Entre elas, a invasão de TIS para implantação de pastagens bovinas. De maio de 2022 a março de 2023 pelo menos cinco casos do tipo vieram à tona.  

No primeiro semestre de 2022, um levantamento feito pelo Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis –, na sigla em inglês) identificou um rebanho de 25.482 animais criados em fazendas ilegais dentro da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. No local foi possível identificar uma área de mais de 13,4 mil hectares desmatados. Segundo reportagem da Infoamazonia, a carne oriunda dos bois criados nessa TI abasteceu os frigoríficos da JBS e foi comercializada por supermercados do grupo Casino Guichard-Perrachon, que no Brasil controla as redes Pão de Açúcar, Assaí e Extra Hiper. 

Em agosto do mesmo ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) apreendeu um rebanho bovino com 187 cabeças no interior da TI Cachoeira Seca, no estado do Pará. Dias depois, outra situação semelhante veio a público, uma reportagem do UOL revelou que grandes empresas multinacionais, a exemplo da Nestlé, estavam envolvidas na compra de carne bovina produzida em um território disputado pelo povo indígena Myky, em Mato Grosso (MT). 

A TI Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), foi considerada a mais desmatada entre os territórios indígenas do país, conforme relatórios do Instituto Socioambiental (ISA). Uma pesquisa do MapBiomas, solicitado pelo Repórter Brasil, apontou que cerca de 98% da floresta destruída na área deu lugar ao pasto para criação de bovinos, que abastecem grandes frigoríficos como JBS e Frigol.  

Foto: Justus Menke, Unsplash

 

Em março de 2023, uma reportagem da Carta Capital destacou a presença de um rebanho de aproximadamente dez mil bois criados clandestinamente dentro da TI Ituna Itatá, situada na divisa dos municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no Pará (PA). Localizada as margens do rio Xingu, a Ituna Itatá é um território que vem sendo ocupado por grileiros e bois há anos. Entre 2008 e 2021, mais de 22 mil hectares foram desmatados. De acordo com o Ibama, os gados oriundos desta localidade são comercializados sem a emissão de Guia de Trânsito de Animais (GTAs), documento que garante que os animais foram vacinados.

O Ministério Público Federal (MPF), unidade do Pará, informou que a principal medida utilizada para combater a pecuária ilegal em TIs no estado tem sido “a realização de termos de ajustamento de condutas que obrigam os frigoríficos a verificar se a origem da carne comprada é legal”. 

O MPF de Rondônia enfatizou que “acompanha a implementação das políticas públicas que visam proteger as terras indígenas por meio de permanentes contatos com lideranças indígenas, com a Funai e Polícia Federal”. Além disso, “na pessoa de procuradores da República, assessores e técnicos em segurança e transporte, realiza visitas periódicas e permanentes às terras indígenas, oportunidade em que visualiza, in loco, os problemas e as demandas trazidas pelas comunidades”. O órgão destacou ainda que “a extensão das terras indígenas no estado, a dificuldade de acesso a elas, o que permitiria constante monitoramento, a dificuldade de identificação e responsabilização criminal dos autores e a falta de compartilhamento de GTAs emitidas pela Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril  (IDARON) têm sido alguns dos principais desafios para a proteção das terras indígenas no estado”. 

A conivência do Estado e a ocultação dos dados

 O relatório “Violência contra os Povos indígenas no Brasil”, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), evidenciou que os casos de invasões e exploração ilegal de recursos naturais em TIs quase triplicaram durante a gestão de Jair Bolsonaro. Conforme o estudo, entre os anos de 2019 a 2021, foram identificados 305 casos de invasões e danos ao patrimônio em pelo menos 226 TIs de 22 estados brasileiros. 

“O contexto geral de ataques aos territórios, lideranças e comunidades indígenas está relacionado a uma série de medidas do poder Executivo que favoreceram a exploração e a apropriação privada de terras indígenas e à atuação do governo federal e de sua base aliada para aprovar leis voltadas a desmontar a proteção constitucional aos povos indígenas e seus territórios”, diz nota do Cimi. 

Entre essas ações o documento destaca: a Instrução Normativa 09, publicada pela Funai em 2020, que liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas, e a Instrução Normativa Conjunta da Funai e do Ibama que, em 2021, passou a permitir a exploração econômica de terras indígenas por associações e organizações de “composição mista” entre indígenas e não indígenas. Além do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que inviabiliza novas demarcações e abre as terras já demarcadas à exploração predatória. 

A falta de transparência e o uso irregular da LGPD e LAI têm cooperado para ocultar informações sobre invasões de terras indígenas para criação de gado bovino. O dossiê divulgado pelo portal De Olho nos Ruralistas revelou uma série de ataques perpetrados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro contra a transparência pública e o acesso a dados ambientais durante seu mandato. O documento evidencia um notável retrocesso nas políticas de transparência e proteção ambiental adotadas pelo governo brasileiro.

Uma das principais ações destacadas foi a extinção do Comitê Gestor do Fundo Amazônia, órgão de extrema importância na gestão de recursos destinados à preservação da Amazônia e ao financiamento de ações de combate ao desmatamento e às queimadas. Essa medida levantou preocupações sobre a falta de apoio financeiro para iniciativas essenciais voltadas à proteção da maior floresta tropical do mundo.

Além disso, o dossiê revelou mudanças prejudiciais nos órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental. Bolsonaro nomeou indivíduos com histórico de atuação contrária à proteção ambiental para cargos-chave, enfraquecendo a eficácia dessas instituições. Essas nomeações geraram dúvidas sobre a capacidade dos órgãos ambientais de exercerem suas funções de forma independente e eficiente.

Outro aspecto destacado pelo documento foi o constante ataque retórico de Bolsonaro a instituições de pesquisa, organizações não governamentais e movimentos sociais engajados na defesa do meio ambiente. O ex-presidente frequentemente questionava a credibilidade dessas entidades e desvalorizava dados científicos que contrariavam sua visão. Essa postura alimentou um clima de desconfiança e descrédito em relação às informações ambientais divulgadas por especialistas.

As consequências dessas ações foram graves para o avanço da transparência pública e a proteção do meio ambiente no Brasil. A falta de acesso a informações confiáveis e o enfraquecimento dos órgãos ambientais comprometeram a implementação de políticas eficazes de preservação, dificultando o combate a problemas urgentes, como o desmatamento ilegal e a degradação dos ecossistemas.

O dossiê enfatizou a importância da transparência e do acesso a dados para a promoção da democracia e a tomada de decisões informadas. Além disso, ressaltou a necessidade de fortalecer os órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental, assegurando que tivessem recursos adequados e independência para desempenhar seu papel fundamental na proteção dos recursos naturais do país.

Em resposta às revelações apresentadas no dossiê, a sociedade civil e os defensores do meio ambiente exigiram que a administração vigente adotasse medidas concretas para fortalecer a transparência pública, garantir o livre acesso a informações ambientais e promover políticas efetivas de proteção dos ecossistemas brasileiros.

No entanto, durante o período abordado pelo dossiê, não foram observadas iniciativas significativas por parte do governo para atender a essas demandas. As preocupações levantadas pela sociedade civil e pelos defensores do meio ambiente foram amplamente ignoradas, o que exacerbou as consequências negativas das ações de Bolsonaro.

A extinção do Comitê Gestor do Fundo Amazônia teve um impacto direto na redução dos recursos disponíveis para combater o desmatamento e as queimadas na Amazônia. Organizações não governamentais e instituições de pesquisa, que desempenhavam um papel fundamental na proteção ambiental, foram constantemente alvo de ataques verbais e descredibilização por parte do ex-presidente.

Essas atitudes minaram a confiança da comunidade internacional e prejudicaram a cooperação e o apoio financeiro para a preservação da Amazônia. Além disso, as mudanças nos órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental resultaram em um enfraquecimento da capacidade do governo de combater efetivamente o desmatamento ilegal e outras atividades prejudiciais ao meio ambiente.

O dossiê também evidenciou a negligência em relação aos dados científicos que embasam as políticas ambientais. Bolsonaro continuou a desconsiderar informações científicas sólidas, promovendo teorias infundadas e baseadas em desinformação. Essa postura anti-científica prejudicou a elaboração de políticas baseadas em evidências e comprometeu a eficácia das ações de proteção ambiental.

Enquanto isso, a sociedade civil e os defensores do meio ambiente intensificaram seus esforços para preencher a lacuna deixada pelo governo. Organizações não governamentais, movimentos sociais e cientistas independentes uniram-se para promover a transparência, fornecer informações confiáveis e pressionar por políticas de proteção ambiental mais robustas.

No entanto, o dossiê deixa claro que uma mudança real só poderá ser alcançada por meio de uma ação governamental firme e comprometida com a transparência e a proteção ambiental. É essencial que o governo atual ou futuras administrações adotem uma postura proativa na promoção da transparência pública, garantindo o acesso irrestrito a dados ambientais e fortalecendo os órgãos de fiscalização e monitoramento ambiental.

Somente assim será possível reconstruir a confiança, tanto interna quanto externamente, na capacidade do Brasil de enfrentar os desafios ambientais e garantir um futuro sustentável para o país e as gerações futuras. O dossiê serve como um alerta para a importância crítica da transparência e da responsabilidade governamental na proteção do meio ambiente e na busca pela sustentabilidade. É fundamental que a sociedade continue vigilante e exija medidas concretas para reverter os retrocessos e promover uma agenda ambiental comprometida e transparente.  

A falta de transparência e o uso indevido da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e da Lei de Acesso a Informações (LAI) são fatores que também têm prejudicado a fiscalização ambiental e ocultado informações relevantes sobre invasões de terras indígenas relacionadas ao ciclo produtivo do gado bovino na Amazônia Legal. 

Segundo uma investigação realizada pelo Repórter Brasil, divulgada e repostada pelo Brasil de Fato, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), órgãos federais responsáveis pela conservação e policiamento ambiental, enfrentam dificuldades para acessar guias de movimentação de gado e cadastros de criadores na Amazônia Legal, o que compromete, por exemplo, a identificação de irregularidades ambientais. 

De acordo com o levantamento, somente o estado do Pará disponibiliza de maneira mais efetiva acesso às informações relacionadas à movimentação do gado e ao cadastro de criadores. Nos outros oito estados da região amazônica (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Roraima e Tocantins), a falta de transparência impede a identificação de diversas irregularidades, como atividades de pecuária em unidades de conservação.

A pecuária desempenha um papel relevante na degradação ambiental da Amazônia, com a abertura de áreas para pastagens e o desmatamento para a produção de alimentos destinados ao gado. A ausência de fiscalização efetiva e a falta de acesso aos registros de movimentação do gado e aos cadastros de criadores dificultam a identificação da origem dos animais e a detecção de crimes ambientais.

Ainda segundo dados da investigação do Repórter Brasil, o ICMBio conseguiu identificar atividades de pecuária irregular em unidades de conservação, resultando em 730 autos de infração e multas no valor de R$ 206,3 mil desde fevereiro de 2022. Esses resultados foram obtidos graças ao acesso concedido pelo estado do Pará às referências da pecuária.

Os dados da pecuária são de responsabilidade das agências estaduais de defesa agropecuária, que coletam e administram informações cadastrais dos criadores, além de controlar a movimentação de gado por meio das Guias de Trânsito Animal (GTAs). Esses documentos obrigatórios registram deslocamentos de animais e fornecem informações relevantes, como origem, destino, finalidade, quantidade, faixa etária e sexo do gado. Mas o acesso a essas informações é restrito e não está disponível para autoridades públicas e órgãos de fiscalização ambiental na maioria dos estados da Amazônia Legal. A investigação do Repórter Brasil, em sintonia com as reportagens do Brasil de Fato, destaca que cruzar essas informações com mapas de propriedades, embargos e pontos de desmatamento possibilita a identificação de responsáveis por irregularidades, inclusive situações de “lavagem de gado”.

Apesar da importância desses dados, o acesso a eles é restrito na maioria dos estados da Amazônia Legal. O Ministério da Agricultura e as agências estaduais justificam que as GTAs têm foco no controle sanitário e não querem misturar informações ambientais. Especialistas, como Paulo Barreto, do Imazon, argumentam que a transparência aumentaria a confiança no controle sanitário e ambiental, especialmente considerando que estima-se que 90% da área desmatada na Amazônia tenha sido convertida em pasto, ressaltando a relevância desses dados para a preservação ambiental.

“Se bases de dados como das Guias de Trânsito Animal (GTA), que trazem informações sobre a movimentação do gado, fossem abertas à sociedade, assim como os dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) – que ainda tem uma transparência parcial dos dados-, seria possível desenvolver ferramentas de rastreabilidade que auxiliaria no controle do desmatamento associado à cadeia da pecuária, inclusive, desmatamento em áreas protegidas”, atesta Marcondes Coelho, Mestre em Ciências Ambientais e Florestais e Analista Socioambiental no Instituto Centro de Vida (ICV). 

O monitoramento dos fornecedores de gado pelos frigoríficos também é falho, contribuindo para as irregularidades na cadeia da carne. A transparência dos dados das guias de movimentação de gado também poderia auxiliar na identificação dos atores envolvidos. 

“Ainda falta transparência na cadeia da pecuária. Sem dados abertos sobre a rastreabilidade, as estratégias para combater o desmatamento na cadeia e a invasão de áreas protegidas ficam limitadas. Os sistemas de monitoramento atuais, implementados pelos frigoríficos, como resposta aos acordos da cadeia da carne, ainda são insuficientes, pois não incluem fornecedores indiretos, o que acaba abrindo brechas para ‘lavagem’ do gado”, conclui Marcondes Coelho.

As lacunas na implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público eletrônico dos imóveis rurais de todo o país, que é auto-declaratório, acabam por beneficiar a grilagem de terras. “Sabemos que existe uma prática de invasão de terras públicas e indígenas para o desenvolvimento de atividades econômicas, que normalmente começa com a exportação de madeira ilegal e, depois, avança para a criação de gado. Muitas vezes, esses invasores fazem declarações no CAR, como se a posse da terra fosse legítima e isso acaba facilitando a grilagem.

A ABRAMPA e o IPAM vêm se posicionando institucionalmente sobre o tema, pois essas sobreposições de CAR a terras indígenas podem ser identificadas e devem ser alvo de atuação dos órgãos ambientais e de terra, para que esses cadastros sejam anulados. O próprio CAR é um sistema que precisa de aprimoramento técnico e de mais transparência, para facilitar o controle social da grilagem”.  reconhece Alexandre Gaio,  Presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), para o triênio 2022-2025.

Uma iniciativa promissora 

A cooperação entre os diferentes órgãos governamentais e entidades envolvidas na proteção do meio ambiente é fundamental para a garantia da proteção dos direitos indígenas e na segurança das áreas demarcadas.  

Recentemente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), empresa pública que busca impulsionar o desenvolvimento socioeconômico por meio de investimentos e empréstimos estratégicos em diversos setores, implementou uma ferramenta tecnológica em parceria com o MapBiomas para garantir que empréstimos concedidos a proprietários rurais não financiem áreas de desmatamento irregular. Por meio dessa iniciativa, o BNDES tem acesso a informações atualizadas em tempo real sobre os biomas brasileiros, permitindo o monitoramento e a identificação de áreas desmatadas ilegalmente.

Desde o início da parceria, que entrou em vigor em fevereiro deste ano, o BNDES utilizou os dados gerados pelo MapBiomas para negar 58 pedidos de empréstimos, totalizando R$ 24,8 milhões. Esses pedidos estavam destinados a propriedades rurais com indícios de desmatamento ilegal em 14 estados, somando uma área de 948 hectares, equivalente a cerca de 1.300 campos de futebol. Tocantins, Pará e Rondônia foram os estados que apresentaram maior reprovação de financiamentos. Os proprietários têm o direito de contestar o bloqueio, podendo apresentar documentos que comprovem a regularidade da remoção da vegetação em suas propriedades para obter o empréstimo.

A integração dos dados do MapBiomas com a plataforma operacional do BNDES permite que o banco monitore inclusive indícios de desmatamentos em imóveis referentes a operações de crédito rural já contratadas, Além de negar empréstimos a propriedades com indícios de desmatamento ilegal. Ao utilizar satélites de alta resolução e gerar alertas e laudos com imagens antes e depois de desmatamentos, é possível ter um controle mais rigoroso sobre as áreas que recebem financiamento e assegurar que os empréstimos concedidos sejam utilizados de maneira responsável. “A adoção de critérios ambientais mais rigorosos para o acesso ao crédito rural pode evitar que o dinheiro público seja utilizado para financiar a grilagem de terras e o desmatamento ilegal em Terras Indígenas e Unidades de Conservação”, afirma Renato Morgado, Mestre em Ciência Ambiental e Gerente da Transparência Internacional Brasil – Organização não governamental de combate à corrupção. 

Dessa maneira, o BNDES demonstra que é possível conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental, mostrando que o agronegócio sustentável é uma realidade viável e necessária. A iniciativa também contribui para fortalecer a imagem do Brasil como um país comprometido com a conservação da biodiversidade e a busca por um futuro mais sustentável. 

E os indígenas, como ficam? 

A invasão de TIs contribui para a redução de acesso dos povos tradicionais a seus meios de sobrevivência, como áreas de caça e exemplares de espécies passíveis de caça, além de ser um vetor de ataques e conflitos à cultura e à vida dessa população. O resultado disso é o afastamento dos índios de suas terras e até o seu extermínio, levando à degradação ambiental do território. 

Os indígenas que tiveram suas terras invadidas ou tomadas enfrentam uma série de consequências graves. “Degradação do solo, desmatamento, aumento da emissão de gás carbônico, conflitos e mortes estão entre os principais impactos ambientais causados pela invasão e exploração ilegal de terras indígenas para a pecuária”, alerta Israel Vale, Coordenador Geral da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. 

A invasão de TIs compromete a integridade cultural, social e econômica das comunidades, além de representar uma violação de seus direitos fundamentais. Entre outras consequências enfrentadas pelos indígenas afetados é possível destacar: 

  • Perda de território e recursos naturais: As terras indígenas são fundamentais para a sobrevivência física, cultural e espiritual das comunidades indígenas. A invasão dessas terras resulta em perda de acesso aos recursos naturais essenciais, como água, alimentos, plantas medicinais e locais sagrados. Isso compromete sua subsistência e afeta profundamente sua identidade cultural e conexão com o ambiente.
  • Violência: A invasão de terras indígenas frequentemente leva a conflitos violentos entre os invasores, as comunidades indígenas e suas lideranças. Esses conflitos podem resultar em agressões, ameaças, intimidações e até mesmo assassinatos. Os indígenas enfrentam um ambiente hostil e inseguro em suas próprias terras.
  • Deslocamento forçado: Em muitos casos, a invasão de terras indígenas leva ao deslocamento forçado das comunidades indígenas. As famílias são expulsas de seus territórios ancestrais e forçadas a viver em condições precárias, muitas vezes em acampamentos improvisados ou em áreas urbanas, onde enfrentam dificuldades para reconstruir suas vidas.
  • Prejuízos culturais e sociais: A invasão de terras indígenas tem um impacto profundo na vida social e cultural das comunidades. Muitas vezes, as práticas tradicionais de subsistência, como a caça, a pesca e a coleta de alimentos, são prejudicadas ou impossibilitadas. A perda de território afeta as práticas culturais, cerimônias, rituais e a transmissão de conhecimentos ancestrais às gerações futuras.
  • Fragilização da saúde e bem-estar: A invasão de terras indígenas também está associada ao aumento da violência, do alcoolismo, do uso de drogas e de doenças físicas e mentais nas comunidades indígenas. O estresse, a perda de identidade e a marginalização resultantes da invasão têm efeitos negativos na saúde e no bem-estar dessas populações.

Proteção dos direitos e da saúde dos consumidores diante da pecuária ilegal em terras indígenas 

Os resquícios da pecuária ilegal em TIs representam um perigo potencial para o consumidor final, uma vez que não há garantia quanto às condições básicas de saúde em que o rebanho foi criado. 

A certificação é um instrumento essencial para garantir a qualidade e segurança dos produtos de origem animal. Ela envolve uma série de procedimentos, incluindo a rastreabilidade do rebanho, a verificação das condições sanitárias, o cumprimento das normas de bem-estar animal e a comprovação da vacinação adequada. 

Os gados criados em terras indígenas invadidas podem estar sujeitos a condições precárias de criação, falta de higiene, uso indiscriminado de medicamentos e até mesmo à exposição a doenças transmissíveis. Sem os devidos cuidados sanitários e monitoramento adequado, a carne proveniente desses animais pode representar uma ameaça à saúde pública.

Assim, os consumidores ficam expostos a possíveis contaminações, problemas de saúde e até mesmo a doenças transmitidas por alimentos. A falta de segurança alimentar é uma preocupação real diante da pecuária ilegal em terras indígenas.

“As empresas devem adotar ferramentas de rastreabilidade e promover a transparência de suas cadeias produtivas para não deixar dúvidas sobre a legalidade da origem e a sustentabilidade de seus produtos. Para reforçar essa rastreabilidade, elas podem utilizar bancos de dados públicos, abertos e confiáveis para evitar a compra de madeira, gado ou grãos provenientes de áreas proibidas, como os alertas de desmatamento do projeto MapBiomas”, enfatiza Renato Morgado, Gerente da Transparência Internacional Brasil.

Por trás das cortinas

A invasão de terras indígenas para a criação de gado bovino envolve diversos atores e interesses financeiros. Embora seja difícil rastrear todas as fontes de financiamento, existem alguns padrões e atores conhecidos que estão associados a essa prática ilegal.

Foto: Felipe Werneck/Ibama
  • Grileiros de terras: Os grileiros são responsáveis por ocupar ilegalmente terras públicas ou áreas indígenas, falsificando documentos de propriedade. Eles atuam com o objetivo de obter terras para a criação de gado, entre outras atividades econômicas. Esses grileiros muitas vezes contam com apoio financeiro de investidores e especuladores interessados na valorização das terras e no desenvolvimento agropecuário.
  • Empresas agropecuárias: Grandes empresas agropecuárias, incluindo frigoríficos e traders de commodities, também podem estar envolvidas no financiamento indireto da invasão de terras indígenas. Essas empresas podem adquirir gado proveniente de áreas desmatadas ilegalmente ou de terras indígenas invadidas, contribuindo para a demanda e incentivando a expansão da pecuária em terras irregulares.
  • Investidores e fundos de investimento: Há casos em que investidores e fundos de investimento financiam diretamente a aquisição de terras para a criação de gado. Esses investidores visam lucrar com a valorização das terras e a produção agropecuária, muitas vezes sem considerar a legalidade das áreas adquiridas.
  • Lavagem de dinheiro: A invasão de terras indígenas para a criação de gado também pode estar associada a atividades de lavagem de dinheiro. Dinheiro proveniente de fontes ilícitas, como o tráfico de drogas e o contrabando, pode ser investido na aquisição de terras e na operação de fazendas pecuárias, buscando legitimar os recursos ilegais.

De maneira geral pode-se dizer que há uma espécie de cadeia composta por diferentes atores que corroboram, e lucram, com a invasão de terras indígenas para fins de pastagens. “São empresários do agronégocio, bancos que financiam e políticos que incentivam uma política de degradação. Os bancos disponibilizam empréstimos, sem verificar a localização das propriedades, se estas incidem em terras indígenas, se os Cadastros Ambientais Rurais (CAR) estão sobrepostos a unidades de conservação. Os empresários promovem o desmatamento de áreas de proteção, vendem e compram gado ilegal oriundo de desmatamento em terra indígena. E muitos políticos incentivam e propõe leis contra o meio ambiente, além de defenderem a redução e extinção de áreas protegidas”, afirma Israel Vale, Coordenador Geral da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. 

A falta de transparência e controle adequados favorece praticas ilegais em áreas de conservação ambiental. O combate efetivo à invasão de terras indígenas para a criação de gado requer ações integradas, como o fortalecimento da fiscalização, a responsabilização dos infratores, a pressão sobre as empresas e os investidores envolvidos e o incentivo ao consumo responsável de produtos agropecuários.

Necessidades 

É fundamental reconhecer e proteger os direitos dos povos indígenas, incluindo o direito à terra, à autodeterminação, à preservação cultural e ao desenvolvimento sustentável. Isso envolve a implementação de políticas eficazes de demarcação e proteção de terras indígenas, a punição dos invasores e o fortalecimento das instituições e mecanismos de defesa dos direitos indígenas. Além disso, é necessário promover o diálogo intercultural, a inclusão e a participação dos indígenas no processo de tomada de decisões que afetam suas terras e seus direitos.

Organizações indígenas, defensoras dos direitos humanos e ambientalistas desempenham um papel fundamental na defesa dos indígenas afetados pela invasão de terras. Essas organizações trabalham para denunciar as violações, promover a conscientização e mobilização social, e buscar justiça e reparação para as comunidades indígenas.

Além disso, a atuação do Estado é crucial para garantir a proteção dos direitos indígenas. Os governos devem fortalecer as políticas de demarcação e proteção de terras indígenas, investir em programas de desenvolvimento sustentável para as comunidades indígenas e garantir a aplicação da lei para punir os invasores e proteger as comunidades afetadas.

A nível internacional existem instrumentos e convenções que protegem os direitos dos povos indígenas, como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. É importante que os países ratifiquem e implementem esses instrumentos, fortalecendo a proteção dos direitos indígenas em nível global.

É necessário também promover a transparência no acesso aos dados da pecuária, possibilitando o monitoramento efetivo das atividades relacionadas à criação de gado e identificando práticas ilegais, como o desmatamento e a invasão de terras indígenas. Isso requer a cooperação entre os órgãos governamentais, o compartilhamento de informações relevantes e a adoção de medidas rigorosas para responsabilizar os infratores. 

No entanto, é importante reconhecer que a situação dos indígenas afetados pela invasão de terras é complexa e desafiadora. A luta pela defesa dos direitos indígenas envolve não apenas questões legais, mas também aspectos sociais, econômicos e políticos. É necessário um esforço conjunto da sociedade civil, dos governos e da comunidade internacional para garantir a proteção dos indígenas e a preservação de seus territórios, culturas e modos de vida.

“É preciso repensar nosso modelo de desenvolvimento e buscar alternativas sustentáveis, que levem em consideração a preservação da natureza, a garantia dos direitos dos povos indígenas e a justiça social. E valorizar e fortalecer as comunidades tradicionais, reconhecer seus direitos territoriais e promover ações que promovam a sua autonomia e o respeito à sua cultura. A luta pela preservação dos territórios indígenas não é apenas uma luta dos povos indígenas, é uma luta de toda a sociedade. Precisamos nos unir em defesa da vida, da natureza e da justiça, para construir um futuro mais justo e sustentável para todos”, alerta Suzane Souza, Doutora em Geografia Humana e professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

A proteção das TIs e a erradicação da pecuária ilegal são elementos essenciais para a construção de um sistema agrícola sustentável e socialmente responsável. Somente por meio da cooperação e da implementação de políticas eficazes é que será possível alcançar um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a proteção dos direitos e do bem-estar das comunidades indígenas e do meio ambiente.

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