TikTok e o “caso Antonella” na Itália
Uma menina de 10 anos chamada Antonella foi ao banheiro da sua residência, sozinha, levando seu celular, para realizar um desafio denominado blackout challenge no aplicativo TikTok. O desafio consistia em tentar ficar sem respirar o máximo possível. Para tanto, ela colocou uma faixa ao redor do pescoço, o que gerou um desmaio, seguido de um coma. […]
Uma menina de 10 anos chamada Antonella foi ao banheiro da sua residência, sozinha, levando seu celular, para realizar um desafio denominado blackout challenge no aplicativo TikTok. O desafio consistia em tentar ficar sem respirar o máximo possível. Para tanto, ela colocou uma faixa ao redor do pescoço, o que gerou um desmaio, seguido de um coma.
A menina, que morava em Palermo (Itália) com seus pais e irmã mais nova, foi encontrada desacordada e levada ao Hospital das Crianças de Palermo, mas não sobreviveu. Em entrevista para o La Republicca, os pais afirmaram que não tinham noção do estava acontecendo com a filha e que tinham lhe dado um celular de presente, porque ela tinha se apossado do aparelho da mãe para baixar o aplicativo Tiktok, com intuito de “fazer ballet, seguir tutoriais de maquiagem e penteado”. Em outra entrevista para o mesmo jornal, o pai de Antonella afirmou que “ela queria ser uma estrela do TikTok”.
Diante da tragédia de Antonella – que encontrou enorme repercussão na mídia italiana -, algo notável ocorreu: as primeiras movimentações regulatórias vieram da Autoridade de Proteção de Dados Italiana, na tentativa de conter o uso do aplicativo TikTok pelos mais jovens.
No dia 22 de janeiro, a Garante per la Protezione dei Dati Personali, em provimento assinado por Pasquale Stanzione, Guido Scorza e Fabio Mattei, determinou o bloqueio imediato do uso de dados de usuários do aludido aplicativo, “para os quais não existe certeza absoluta da idade e, consequentemente, do cumprimento das disposições relacionadas com as diretrizes de dados pessoais”. O prazo da referida proibição será até 15 de fevereiro, data em que serão realizadas novas avaliações.
A ordem de bloqueio foi fundamentada pelo artigo 24, parte 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a qual preleciona que “todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o melhor interesse da criança”, bem como pelo Recital 38 da General Data Protection Regulation (GDPR) a qual aduz que “as crianças merecem proteção específica no que diz respeito aos seus dados pessoais”, considerando que podem “estar menos cientes dos riscos, consequências e garantias” em relação ao tratamento de tais dados.
A Autoridade Italiana também mencionou o art. 25, §1º, do mesmo regulamento, o qual determina que o responsável pelo tratamento adote medidas técnicas e organizacionais adequadas para implementar os princípios da proteção de dados pessoais. Por fim, ressalte-se que a Autoridade poderia ter se pautado também pela Convenção dos Direitos da Criança, da qual o país é signatário, entretanto optou por não fazê-lo.
Apesar da implementação de uma medida mais impositiva ter sido realizada apenas em janeiro de 2021, o aplicativo já estava sendo alvo de diversas acusações, inclusive pela própria Autoridade Italiana. Desse modo, os principais pontos críticos assinalados por tal autoridade, alguns meses antes, foram: (i) a escassa atenção do aplicativo à proteção de menores de idade; (ii) facilidade em contornar a proibição do registro de crianças com menos de 13 anos; (iii) pouca transparência e clareza nas informações prestadas aos usuários; (iv) uso de configurações padrão que não respeitam a privacidade.
Em 2019, o aplicativo foi multado pela Federal Trade Comission (FTC) em US $ 5,7 milhões por violar as leis de privacidade de crianças dos EUA. Em setembro de 2020, em uma jogada meramente discursiva e geopolítica, a administração Trump anunciou que iria banir os aplicativos WeChat e TikTok de lojas estadunidenses. Na época, o New York Times notou que o movimento trumpista representava “um sinal tangível da fratura da ideia de internet global”, motivada por “nacionalismo e medos de segurança”.
Diante dessas múltiplas ameaças, a empresa reagiu e anunciou que está fazendo alterações em seu aplicativo com intuito de proporcionar uma experiência segura para os usuários mais jovens, tornando as contas para crianças e adolescentes de 13 a 15 anos como privadas por padrão, além de restringir outras funcionalidades, como a interação com outros usuários e sugestões de conteúdo, para todos aqueles com menos de 18 anos. O aplicativo também anunciou uma parceria com a Common Sense Networks, uma empresa de mídia focada na criação e curadoria de experiências digitais envolventes e adequadas à idade para crianças e famílias.
O caso Antonella também ocasionou a abertura de investigações em relação a outros aplicativos e plataformas, como o Facebook e Instagram.
Após a veiculação de que a criança italiana teria dez perfis no Instagram e três contas no Facebook, a Autoridade Italiana requereu a tais aplicativos o fornecimento de uma série de informações incluindo quantos e quais perfis a criança possuía e, caso se confirmem essas circunstâncias, explicar como é possível uma criança com menos de 10 anos estar inscrita nas duas plataformas. Acima de tudo, pediu indicações precisas sobre como funciona a verificação de idade adotada, para averiguar o cumprimento da faixa etária mínima de registo. Destaque-se que essas duas redes sociais também estão sendo investigadas pela Autoridade de Proteção de Dados da Irlanda, que vem coletando informações desde setembro de 2020.
Vale destacar que Pasquale Stanzione, atual Presidente da Autoridade Garante na Itália, possui uma trajetória profissional profundamente conectada com os direitos das crianças. Por décadas, foi professor de direito privado da Università degli Studi di Salerno. Foi coordenador do programa de doutorado sobre direito da pessoa. Em 1975, introduziu o conceito de “capacidade de discernimento” no seu livro Capacità e minore età nella problematica della persona umana. Posteriormente, publicou Scelte esistenziali e autonomia del minore (1983) e Garanti per l’infanzia e interesse del minore (2000).
Não é sem razão que Stanzione tenha liderado a emblemática decisão da Autoridade italiana e anunciado que o Garante fará uma fiscalização rigorosa sobre a questão da idade mínima de ingresso em redes sociais.
Em entrevista após o caso Antonella, em 23 de janeiro, Stanzione anunciou que a agenda italiana poderia se centrar em duas frentes: a responsabilidade primária e preventiva no que diz respeito à apuração da idade dos usuários e a secundária, relativa à obrigação de remover conteúdos ilegais, como aqueles relacionados ao incentivo ao suicídio. Para Stanzione, a solução não está somente no direito e na reformulação das categorias jurídicas, mas também em um intenso trabalho de “pedagogia digital”, com amplo envolvimento das escolas e famílias. Em suas palavras, as tecnologias atuais apresentam “um extraordinário potencial”, mas também exigem “medidas de proteção“.
O “caso Antonella” inaugura um amplo debate sobre a atuação regulatória de autoridades de proteção de dados pessoais e a responsabilidade dos controladores pela averiguação de idade mínima para utilização de aplicações de Internet.
É de esperar algum grau de coordenação institucional em nível regional nos próximos meses. Em 28 de fevereiro o assunto será pautado em Bruxelas, em reunião com diferentes coordenadores de autoridades de proteção de dados pessoais. A depender da reação de outras lideranças, o assunto pode ganhar corpo em 2021.
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